encenação

Hoje saí de chapéu na cabeça, quando dou conta estou a fazer uma vénia de chapéu na mão quase até ao chão. À minha frente está uma jovem senhora sentada distraída, pacatamente com um pequeno cão ao colo.

O cão está ao colo da jovem senhora porque se assustou com a minha paragem e aparatosa vénia pegando no chapéu com a direita, erguendo-o alto e mergulhando o braço estendido, o tronco, a própria cabeça. Enquanto o braço direito leva as costas da mão que segura o chapéu quase até ao chão, o braço esquerdo ergueu-se por trás das costas, como se eu fosse um boneco.

- Minha senhora tenho a noção do ridículo do meu cumprimento, posso-me sentar e fazer-lhe companhia?

- Porque havia de querer a sua companhia, se até assustou a Fifi?

- A sua cadelinha veio das ilhas Fidji? Sorrio, ela sorriu e respondeu:

- Esteja à sua vontade! Com os olhos indicou lugar no largo banco público, capaz de dar para umas quatro pessoas se sentadas direitas lado a lado.

Tratei de ocupar o lugar de duas pessoas e sentei-me de perna traçada olhando para a jovem, cujo corpo também rodara de modo a me poder observar com natural curiosidade.

- Hoje trouxe o chapéu a passear e quis praticar um pouco de teatro.

- É actor?

- Sou, todos somos. Deu-me tempo de olhar à volta, sentir que não ia responder e ganhei embalagem para começar a contar uma história qualquer. Comecei:

- Não sei muito bem ao certo porque fiz o que fiz, apeteceu-me. Tenho alguma ideia da razão porque me terá apetecido, apeteceu-me meter conversa consigo. Porquê? Não pensei nos porquês, vou no entanto interpretar a cena. De algum modo achei que a sua cara era, é, a de uma pessoa confiante, tranquila, que está aqui a passar o tempo na companhia da Fifi. Lembrei-me que já não faço um piropo faz anos e apeteceu-me dizer qualquer coisa do género, mas não fui suficiente rápido para verbalizar uma ideia, o dito dito..., o piropo que não saiu. Perante mim próprio acho que resolvi bancar o espantalho, o palhaço se preferir.

- Prefiro o espantalho, porque me espantou e espero continue.

- Obrigado. Estava, estou, a tentar pensar em voz alta o que me levou a esta abordagem espalhafatosa. Primeiro pensar que não a assustaria, depois fazer mesmo uma palhaçada. Dalgum modo, mesmo sem racionalizar, acho terá sido a maneira de ganhar tempo para lhe dizer Bom Dia! Acho que não disse, deixe que lhe deseje uma Boa Tarde!

Estendi o braço direito num arco que fiz sair em semi-círculo, terminando de braço estendido muito próximo dela. Se lhe tivesse apetecido, poderia ter segurado a ponta dos dedos da minha mão estendida na sua direcção com a palma virada para o ar. Permitiria o gesto clássico da vénia, ou do beija mão. Como o meu tronco desta vez tinha ficado direito, as suas mãos continuaram junto da Fifi ao colo de grandes olhos fixos olhando através das farripas do seu penteado de fifi ou lulu. Continuei o gesto, recolhendo o braço.

- Obrigada, está um dia agradável. Agradeceu.

- Há mais motivos objectivos, quer que continue a especular sobre o porquê da minha abordagem tão inusual?

- Agradeço, estou a gostar, tranquiliza-me saber que é inusual. Sorriu.

- Está vestida como uma senhora! Diria que a sua presença me lembrou um quadro, parece-me uma personagem duma ficção. Isso fez, talvez, com que eu teatralizasse.

- Tem razão, estou muito senhoril. Voltou a sorrir.

- Já tentei ser detective e detectar os porquês mais imediatos dos meus mais recentes actos, posso saber porque está tão... senhoril? Foi a minha vez de deixar falar um sorriso e dar tempo à minha interrogação, a qual vi que ia colher resposta.

- Fiquei de ir lanchar com a minha mãe e uma amiga que a veio visitar, andam as duas às compras, fiquei de ir ter com elas, mais daqui a um bocado.

- Penso que isso explica o vestido, a sua calma tranquila e mesmo a paciência para aceitar estar a falar com um desconhecido.

- Pode, em parte, agradecer à Fifi. Ela saltou para o meu colo mas não me parece que tenha ficado assustada, diria mesmo que simpatizou consigo. Está aqui de poleiro a olhá-lo, mais curiosa ainda do que eu, digo eu. Voltou a sorrir. Se se tivesse assustado, teria latido. Acho que houve uma coincidência... Quanto ao meu vestido, é verdade, é da minha mãe. Ela quis que eu aparecesse apresentável à amiga de infância, já não se vêem há bastante tempo. A amiga veio mesmo para estar com ela e vai ficar, pelo menos até amanhã.

- Agora posso eu contar porque estou tão disponível, com esta disposição airosa que não atemorizou a Fifi e a está a manter curiosa a si?

- Se quiser, está a ser muito agradável a companhia. Acho que não diria a mais ninguém estar a sair com um vestido da minha mãe, mesmo que ele vestido possa parecer. Deixou-me ver, levemente, os dentes.

- Tem um sorriso muito bonito.

- Obrigado, ainda não fez o seu piropo ou foi agora?

Acho que não vou contar como acabei por ir ao lanche, dizermos à mãe e à amiga da mãe que ela estava grávida e tínhamos acabado de confirmar na Farmácia. Acabámos por ser dois a fazer teatro, acabei por ganhar o jantar e depois saímos juntos à noite, para festejar a nossa "encenação". Claro que no dia seguinte viria a dar barraca, mas se não fizermos um pouco de teatro, ou muito teatro... De vez em quando é saudável, é mesmo essencial. Basta ver a minha carta de ontem, quase deixou sem comentários os caros e caras leitoras. Hoje, para não estranharem, até resolvi escrever um conto de belo efeito: um encontro que deixou a senhora/rapariga de esperanças :)

A rapariga estava farta de viver em casa dos pais, a amiga tinha-lhe parecido uma chata, ela não estava disposta a dormir no sofá da sala. Claro, encontrou um cavalheiro.!. :)))

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