E onde já se viu passarinho falar?

E aquela bola de fogo a encher-lhe o peito, aquela noite calma, e ia ser como tantas outras, só que foi impossível, e deixou a mulher na cama a reclamar dos cravos nos pés, do custo da vida, da poeira nos móveis – a gente tem que mudar daqui – e saiu primeiro que o coração lhe saísse pela boca.

E, já de saída, bateu no quarto de lado, Maria Antônia, as estrelas estão no céu, Maria Antônia, o cometa, olha a cauda luminosa, Maria Antônia era o anjinho louro de sua filha, sempre habitando espumas e doces, bolas de neve, e Maria Antônia se levantou e saiu com ele, que ela era tantã que nem o pai e não se importava de pegar resfriado ou de perder a prova de Linguagem do dia seguinte.

E foi a andada na noite que virou dia, em roda os tico-ticos topetudos de pulo em pulo saudando a aurora rosa do céu, e era claro e orvalhado o campo, que até machucava os olhos e nossos olhos iam mastigando, porque era preciso se fartar, se engordar daquelas coisas, a vida era tão breve...!

E se lembrou do dia em que sua casa – sua, não, dos pais – foi derrubada, estava velha e fora de estilo, mas nenhum daqueles pedreiros nem aquele engenheiro bonitinho e presunçoso e aspirante a burguês, com um mísero fusquinha na porta, ninguém sabia o que seus pais tinham sofrido pra fazer aquela casa, a água e pedra e areia no corgo do fundo, trazido tudo no lombo até pela mãe, barriguda dele, suando, ninguém sabia nem se importava, e botaram aquela casa pré-fabricada no lugar, estupidamente funcional e sem tempero.

Mas nem por isso se esqueceu do gosto da hora, só se esqueceu foi de Maria Antônia, o anjinho, perdeu-se dela e do senso, bêbado como estava do momento, do perfume e do toque do vento, e começou a descer fundo no poço, lá onde os peixes se confessam, começou a rir pra eles, subitamente entendidos uns dos outros, amigo antigo, e a falar com o irmão mais novo do tico-tico, da sua laranjeira, aquela da laranja azeda que arrancaram um dia pra fazer massa no lugar, areia e cascalho, cascalho e areia...

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De manhã, dez horas mais ou menos, quando povo já ia pra fábrica, prenderam-no na Volta da Cobra, pois agia estranhamente, e onde já se viu passarinho falar?

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Para Manuela, a manhã mais angustiante, pois só vê a menina pelas dez horas, trazida por um policial, o mesmo que lhe conta do marido.

Manuela guarda bem guardados os escritos de Juliano que, coitado, é uma alma boa, apesar de tudo. Mas não consegue esconder que tem medo de Maria Antônia ficar desse jeito também, tantã que nem o pai, pois ela já fala com galinha, pato e beija-flor. E diz que é irmã da rosa... E onde já se viu rosa ter irmã?

(Brasília, DF,09/08/1974)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 13/06/2017
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