Pedra no caminho
O som fluía arrastado, quente e abafado, da vitrola, enquanto o velho vinil que fora de minha mãe girava lentamente, ganhando novamente vida e inundando minha casa de nostalgia.
"O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada"
Maria Bethânia ia cantando e Eu dançava, meio que fora de ritmo, nos braços de Stefanie, com os olhos grudados nos seus, dada nossa semelhança em altura. Ela parecia não dar importância para minha falta de talento para dança, e apesar da seriedade em seu rosto, eu sabia que ela estava feliz.
A cada verso da música, arrepios corriam por seus braços e ela me puxava para ainda mais perto. Quis me beijar, mas eu não deixei, insistiu, mas eu de teimoso, resisti.
A prendi com toda minha força, mas ainda assim, gentilmente. Ela lutou, irritada e inquieta. Eu queria que ela tivesse consciência daquele momento, e não que se jogasse em mais uma loucura lasciva, como as que nós estávamos tendo.
Ela parou de resistir e amoleceu e se entregou. Soltei os seus braços e tirei os cabelos da frente da sua testa. Stefanie, contrariada e perdida, fechou os olhos e suspirou um de seus suspiros de birra, de quando ela não conseguia disfarçar a própria confusão.
Mas ai, eu trouxe seu rosto de encontro ao meu, segurando levemente em sua nuca.
Trouxe a sua boca até a minha. Beijei-a, nos lábios, no rosto, na testa, no pescoço, na alma.
Desci pelo seu colo e soltei o seu vestido pelas alças até que caísse completamente no chão.
Stefanie cobriu os seios com as mãos, num reflexo de pudor que ela raramente tinha.
Desnuda, não de corpo, mas de mascaras, ela enrubesceu e olhou para o chão.
Deitamos no chão mesmo e nos deixamos ficar em silêncio por um tempo, enquanto minhas mãos passeavam por seu corpo. Eu calei porque quis, mas ela, eu sabia, tinha muito engasgado e por dizer. Finalmente ela recostou a cabeça sobre meu peito e se pôs a chorar, lágrimas que eu sabia que estavam acumuladas já há muito e por causas muito maiores do que eu poderia compreender. Na realidade aquela não era minha função ali. Só quis que de algum jeito ela pudesse ser a pessoa que ela queria ser, e não a que tinha que ser no dia a dia.
Ela chorou e soluçou e me beijou. Depois me bateu, também no peito, como que se estivesse frustrada por ter se aberto tanto. E eu deixei que me agredisse...
- O que você quer de mim, Rômulo?
- Não quero nada mais do que você queira e possa me dar.
- Você adora essas suas falas inteligentes... ou que você acha que soam inteligentes, mas que não respondem nada.
- Que resposta você quer que eu dê?
- Uma resposta humana e não mecânica.
Parei ali, abatido pela pancada de suas palavras, e não pude sequer responder.
- Olha, eu não me importo com as suas mulheres, ou com os versos que você escreve para elas. Na verdade eu me incomodo, mas que se exploda, sei conviver com isso. Quanto aos seus silêncios e seu laconismo ocasional, confesso que fico confusa, mesmo sabendo que isso é parte do que você é. – Continuou, entre lágrimas e soluços.
- Stefanie... eu – falei hesitantemente, até que ela me interrompesse.
- Eu ODEIO que você me chame assim, pelo nome completo. Não me reconheço nas suas palavras quando você fala assim... Eu te amo e te odeio pelas coisas que você me faz sentir. Odeio ser levada assim, tão facilmente por teus versos, tuas brincadeiras, teus sorrisos. Queria que fosse mais simples.
- Se fosse mais simples, você não estaria aqui. Se fosse simples você não sentiria tanto.
- isso não é um jogo, ok? Meu coração está na parada, não vê?
- E onde você acha que o meu está? Não acha que eu sinto também, ou que não sou vulnerável a você? Acha que o que você fala não me toca?
- Não foi isso que eu quis dizer.
- Então o que foi, mulher?
- Não sei. Queria saber onde estamos.
- Estamos aqui, nos braços um do outro. Pra mim não existe nada além de aqui e agora. Mesmo que eu saiba que amanhã vamos ter que voltar para nossas vidas.
- No começo isso não era um problema, mas agora acho que é.
- Sempre vai ter alguma coisa, Stefanie. Sempre vai ter uma pedra no caminho. Você pode passar por cima dela, ou dar meia volta.
- Não quero dar meia volta.
- Eu sei.
ficamos calados, olhando um para o outro.
O disco já havia parado de girar sem que tivéssemos percebido. Desliguei a vitrola e tomei Stefanie pela mão. Sentei em minha cama e ela se encostou na janela para fumar um cigarro.
Ainda faltava muito tempo para que amanhecesse e eu não tinha nenhum sono. Eu sabia que eventualmente ia adormecer, mas me perguntava se Stefanie estaria ao meu lado quando eu acordasse. Naquela altura, não sabia o que esperar dela, mas de alguma forma, estava ansioso para descobrir.