Segredo, repulsa e sofrimento

Simpatizante da Doutrina Espírita Julia costumava, todas as noites antes de dormir, conversar informalmente com Deus. Para ela, a conversa era mais efetiva do que qualquer oração. Esse rito herdou da avó materna, que o tinha como o mais importante no decorrer do dia. Nada a afastava dele.

Naquela segunda-feira à noite, saindo do Centro Espírita onde finalizava os estudos da doutrina, chegou em casa e a encontrou, como sempre, da mesma forma. A única luz provinha de um velho abajur no canto da sala de estar. Tomou um banho, vestiu a sua camisola preferida, deitou-se e iniciou a conversa, de forma tão natural que parecia estar conversando com o seu melhor amigo num bar qualquer.

Subitamente pensou no problema que acabara de enfrentar com seus dois sobrinhos, que de espiritualidade nada aprenderam e, infelizmente, eram pessoas orgulhosas, duras com a vida e com eles próprios, a ponto de proibí-la de ver suas pequenas filhas, os grandes amores da vida de Julia. Perderam a mãe aos trinta e poucos anos e passaram a ver no pai o seu herói, infelizmente um homem sem princípios que sempre odiara Julia por ela saber das suas falcatruas e ter auxiliado a irmã na condução da vida dos sobrinhos. No último aniversário de uma das suas sobrinhas, a Clarissa, Julia sofreu tanto por não poder chegar perto para um beijo, para entregar uma lembrança ou mesmo dizer que a amava que resolveu beber uma, duas, três doses de whisky. Caiu na cama sem pensar em mais nada. Na verdade, naquele dia, era o que precisava.

Para Julia, que já tinha vivido muito, lutado muito e serpenteado a vida aceitando inúmeras mudanças, esse era o maior problema que enfrentara. Seu coração partira desde que recebeu aquelas infames mensagens deixando claro o quanto ela era insignificante na vida deles. Como isso poderia ter acontecido, já que amor e auxílio por parte dela nunca faltaram? Fragilizada, com auto-estima baixa, fitou o teto e suplicou ao seu mentor que a auxiliasse, sob pena de cair doente de tanta tristeza. Rumou para a varanda e acendeu um cigarro. Não fumava há mais de três meses. Tragou-o com firmeza como se estivesse punindo-se por tamanho desespero.

De repente tocou o telefone. Era sua tia Anaíde, mulher bonita nos seus 85 anos de idade. Já sabendo do ocorrido foi direto ao ponto e questionou como Julia estava. “Estou aos pedaços” respondeu. Foi então que Tia Anaíde, dona de uma sabedoria conquistada na sua vida permeada por perdas e ganhos, pediu que Julia fosse ao seu encontro no dia posterior. Pretendia entregar-lhe um terço que fora usado por sua mãe, avó de Julia. Sabia que, apesar da sobrinha não seguir a religião católica, entendia de sinais e aquele terço era um sinal de que sua avó a estava protegendo naquele momento tão difícil. Julia dormiu um sono tranquilo.

Já na residência da tia, agradeceu o terço, guardou-o na bolsa e convidou a tia para fazerem uma sessão de Reiki. Era preciso buscar equilíbrio para seguir em frente. A tia, feliz por poder ajudá-la, incumbiu-se de agendar a sessão para a próxima semana. Ofereceu um chá e as duas rumaram para a cozinha quando, sentada à mesa, Julia tomou a liberdade de desabafar toda a sua tristeza, toda a crueldade que fora tratada. Não conseguia entender como tudo tinha ocorrido, como ser odiada por sobrinhos que ela sempre amara tanto. Foi então que tia Anaíde, com imenso carinho, tocou nas mãos da sobrinha e disse: “Busque a calma e entenda a função do tempo. Reze, especialmente por eles, porque tu, nesse momento, precisa somente extirpar a tristeza. O teu coração sempre foi bom e nada pode desmontá-lo. Conte sempre comigo minha filha.” Julia secou as lágrimas, sorriu e encaminhou-se para a porta com a certeza de que a força da tia e o terço da avó a fariam dar a volta por cima.

Retornou para casa com o terço entre os dedos. Sentia-se segura. O dia estava bonito e o sol reluzia no painel do carro, refletindo o presente no vidro. O terço, a partir do recebimento, passou a ser o seu amuleto, o seu sinal de que as circunstâncias poderiam mudar. Próxima à uma sinaleira, confiante e ao mesmo tempo distante, não calculou o espaço entre o seu e o carro da frente e, num piscar de olhos, viu-se em um pequeno acidente. Desceu do carro, percebeu que os dois carros foram levemente amassados, entregou o seu cartão pessoal ao motorista afetado e, sem pestanejar, pensou: “quem sabe este fato não serviu para sacudir o meu pensamento e aceitar as palavras da tia Anaíde? Guardarei-o comigo. Não pretendo preocupar ninguém, até porque o problema será resolvido no tempo certo.”

Antes de chegar em casa resolveu passar na casa de uma amiga para bater um rápido papo. Em conversa com ela, abriu-se e contou o que havia acontecido e no quanto aquele dia estava sendo diferente, já que ela acreditava em sinais. A amiga a acalentou e, em tom confortante, colocou-se à disposição para encontrar-se com ela sempre que a tristeza retornasse, deixando claro que o tempo seria, sem dúvida alguma, o senhor de tudo.

No final da conversa a amiga, em tom pensativo, resolveu abrir-se e falar que já tinha tomado conhecimento do ocorrido e que não tivera coragem de falar. Foi procurada pelo pai dos sobrinhos de Julia, com uma história totalmente diferente, envolta em acusações e inverdades. Julia, atônita, segurou o terço novamente com força entre as mãos e chorou.

Retomou a conversa e abriu-se por completo com a amiga, expondo segredos que havia jurado para a irmã que jamais abriria. Somente assim ela poderia ser entendida, sob pena de morrer com a cruz na cabeça sem qualquer direito de defesa. Não queria incorrer, mais uma vez, na omissão. Para proteger a irmã foi omissa inúmeras vezes e, infelizmente, não conseguira resgatar tantas e tantas coisas erradas até o seu falecimento. Era preciso gritar por socorro, exercer o seu direito de defesa, nem que somente sua amiga soubesse da verdade.

E assim aconteceu. Sentiu-se mais leve, embora um tanto culpada pelo fato de estar contando segredos que jamais imaginou contar. Sentiu-se uma traidora. Mas foi preciso. Pelo menos uma pessoa saberia o porquê do afastamento das pessoas que ela mais se dedicara e amara. Caso contrário implodiria como uma bomba, com o coração rasgado de tanta tristeza.

Maio.2017