A solidão x o perigo

Com grande inteligência, Lika galgou altos postos em empresas de Desenvolvimento de Projetos, inclusive gerenciando a Área Comercial de uma das maiores empresas no Vale do Sicílio. Mas não era feliz. Vivia tomando anti-depressivos e não raras vezes bebia além da conta. Seu mundo era sem graça, sem afetos, sem norte. Não era o caminho que queria seguir.

O seu lado profissional a consumiu tanto que ela só conseguia enxergar-se no trabalho, em reuniões profissionais ou dentro de aviões. Sentia o cheiro dos sucos servidos nas reuniões, com doses cavalares de conservantes, misturados com os números que apresentava constantemente em relatórios, para comprovar o andamento de seus projetos.

À noite tinha dificuldade para dormir e não conseguia concentrar-se em qualquer leitura. Acabava sempre abrindo o computador e buscando subsídios para acrescentar no seu trabalho. Sentia-se entediada na maior parte do tempo. A vida que levava não era vida.

Numa das vindas ao Brasil, ao seu lado no avião sentou-se um homem um tanto diferente, usando uma burca vermelha e alguns colares coloridos. Iniciaram uma doce conversa e, em breve, já estavam olhando um no olho do outro. Lika sentiu uma boa energia no companheiro de viagem, justo o que ela estava buscando, sem saber, há um longo tempo.

Em meio à conversa ela tomou conhecimento de que ele era natural da Bahia, mas havia passado 3 anos na Flórida junto a um grupo americano que buscava estudar a cultura baiana e as inúmeras manifestações religiosas que dão conta da grandiosidade do culto, seja aos santos católicos, aos orixás ou aos caboclos. Lika lembrou-se de uma semana que havia passado na Bahia, na sua adolescência, e no seu retorno encantada com essa miscigenação. Pensou no quanto a vida daquele homem era diferente da sua, no quanto ele teria tempo para espiritualizar-se e entender o mundo de uma forma mais concreta. Aquietou-se e encolheu-se no assento. Subitamente foi questionada se não gostaria de conhecer a Colônia que estava aguardando-o no Sul. Segundo ele, uma colônia naturalista, fincada no alto de um morro no distrito de Monjolo, na cidade de Santo Antônio da Patrulha, que contava com estudos constantes e muito trabalho para salvaguardar a subsistência dos envolvidos. Lika fitou-o e, apesar da sua formação, sentiu-se pequena frente aquele homem que parecia ser a melhor companhia para abrandar a sua vida naquele momento.

De pronto recusou o convite. No dia posterior recebeu uma ligação dele argumentando com mais ênfase o quanto seria bom para ela conhecer o lugar. Foi então que cedeu e resolveu viajar com ele. Lá chegando encantou-se com o lugar. Um riacho desaguava no meio da Colônia e o som das águas transmitia uma tranquilidade há muito não sentida por Lika. Tentou entender o que faziam realmente aquelas pessoas isoladas naquele lugar. Olhares eram trocados e Lika fazia o maior esforço para sentir-se bem, já que aceitara o que poderia ser uma das maiores loucuras da sua vida. Sentou-se em uma rede após o almoço, no intuito de aguardar uma reunião que aconteceria à tarde na colônia.

Sem querer adormeceu e alí ficou até ser tocada levemente na cabeça de forma tão delicada pelo companheiro de viagem que nem sobressaltada ficou. Olhou-o profundamente e do seu olhar brotou um pedido de socorro. O homem apanhou-a pela mão e, como se entendesse, levou-a mansamente à reunião sem murmurar uma só palavra. Lika não resistiu em momento algum.

Na reunião percebeu que o ambiente era um tanto formal, as pessoas concentradas, espaços tomados por homens e mulheres de todos os tipos. Num pequeno palco em andar superior discursava, em tom altivo, um homem de barba branca e vestes coloridas. Falava num Deus diferente, num propósito que ela desconhecia. Começou a ficar com medo. Nunca estivera em local parecido, nem mesmo estudara qualquer coisa sobre religiosidade. O que aprendera na infância teve seguimento até então. A reunião durou uma hora.

Na saída, ainda assustada, foi procurada pelo companheiro que a levou para tomarem uma água de uma fonte próxima à Colônia. Sua voz era branda, bem mais branda do que antes. Parecia ter incorporado aquelas palavras e mudado até mesmo o semblante.

Lika, ao entardecer, tomou a decisão de que, mesmo sem ter um conhecimento básico do que se passava por alí, iria embora. Não era o seu lugar. Não tinha a sua cara. Não a traria nada de diferente. Sentiu-se impaciente, mas era o seu jeito e, aquelas alturas, não mais mudaria. Buscaria novos caminhos, pois nunca apreciou rituais. Tinha consciência de que o trabalho, a princípio era sério mas, para ela que não buscava qualquer explicação para a sua crença, aquilo era perda de tempo.

Chegando em seu apartamento em Porto Alegre, encontrou-o empoeirado e com cheiro de mofo. Pensou no quanto estava ligada no trabalho e pouco ligada nela própria, nas coisas que gostava, no seu mundo. Nem mesmo uma faxineira ela havia contratado para cuidar do seu canto enquanto estivesse fora. Sem dúvida o trabalho a absorvera por completo nos últimos anos, a ponto de ela perder a própria referência e perceber-se vulnerável e carente. Como chegar no Brasil e aceitar um convite daqueles? Pensou se não seria um imenso perigo para uma mulher na sua situação de vida. De tanto pensar caiu na cama em sono profundo. No dia seguinte acordou tarde, tomou café e saiu para comprar um jornal. Estava com saudades da Zero Hora, empresa na qual trabalhara como estagiária no início de carreira. Na quarta página, em letras garrafais a seguinte manchete: “Colônia no interior de Santo Antônio da Patrulha está sob investigação após ter sido denunciada como ponto de drogas. O seu suposto mentor chegou ao Brasil há dois dias e encontra-se preso”. Sentou-se na sarjeta em frente à banca para continuar a leitura: (...) com um certo disfarce de seita, o grupo busca pessoas vulneráveis e situação financeira definida para adentrarem no crime. Lá, tais pessoas são levadas à conversão, se não se detiverem antes (...). Assustada Lika fechou o jornal e decidiu retornar ao apartamento para decidir se ligaria para a polícia ou não.

Um tanto zonza não mais hesitou. Assustada e ao mesmo tempo aliviada, trocou de roupa, desceu e chamou um taxi. Pediu ao motorista que a deixasse na delegacia mais próxima. Por incrível que pareça não mais lembrava desse detalhe. Depôs detalhadamente sobre o que aconteceu, recebeu agradecimento do delegado, enfatizando a sua coragem e, ao chamar outro taxi para retornar para casa já havia decidido que descansaria uns dias na casa de praia de uma tia, literalmente isolada do mundo e, a seguir, retornaria ao Vale, certamente de forma menos obcecada e, na primeira oportunidade, procuraria um psiquiatra.

Maio.2017

Rosalva
Enviado por Rosalva em 31/05/2017
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