Destino - Wyrd
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Wyrd bid ful araed
Maio, 2017
Subi num ônibus praticamente vazio na avenida Conde da Boa vista. Passavam das 22 horas e eu estava bêbado. O motorista acelerava ensandecido e praticamente me jogou ao chão, tanto devido à inércia quanto ao meu estado alcoólico. Achei que tinha torcido o pé pela dor que senti no momento, mas no fim, vi que não era nada. Contei minhas moedas e paguei a passagem. Eu estava bastante tenso naquele momento. Não sabia exatamente o que estava fazendo, pegando um ônibus naquela hora... principalmente por que ele me levaria para um lugar que eu não me sentia pronto para estar.
Decidi não pensar a respeito e esvaziei o resto da garrafa de cerveja que havia comprado. Me sentei num assento de janela apreciei o cheiro de maresia que tomava todo o veículo. Eu já tinha feito aquele caminho diversas vezes, mas em outras circunstâncias, que não vem ao caso mencionar agora. Posso dizer que a viagem me trouxe um gosto agridoce à boca. Lembranças boas e ruins se misturavam na minha cabeça e eu quase me arrependi de ter me metido naquela situação. Mas quantas vezes eu fazia coisas fora do roteiro? Eram muito poucas. Então talvez algo interessante pudesse sair dali. Desci na Praça do Carmo, próximo ao sítio histórico de Olinda. Esperei o meu amigo Pablo, como havia sido combinado. Ele levou um tempo para chegar... o já que era esperado dele. Mais lembranças foram tomando minha cabeça, mas eu estava determinado. Não voltaria para casa tão cedo.
Pablo chegou junto com uma mulher que eu não conhecia, mas que eu sabia que tinha algo com ele. Ao me ver, os dois acenaram do outro lado da rua. Atravessei e me juntei a eles.
Pablo me recebeu com um caloroso abraço e apresentou-me sua garota.
Chamava-se Bruna. Devia ter algo como 1.60 e tinha o cabelo tingido de ruivo alaranjado.
Não pude inferir muita coisa sobre ela num primeiro olhar e me resumi a caminhar ao lado dos dois e ouvir o que tinham a dizer sobre o local onde iríamos beber.
Bruna pediu para ir no banheiro de um bar no começo da ladeira antes que nós seguíssemos adiante.
Pablo me olhou com alguma preocupação e falou com a voz de quem já havia tomado mais do que alguns copos de cerveja.
- É muito bom sair com você meu amigo. – Disse-me.
- Verdade cara. É sempre bom poder encontrar você por ai.
- Tem algo te incomodando?
- A mesma merda de sempre...
- Aquela sua ex ainda?
- Sim, mano. De alguma forma ela ainda dá um jeito de se manter presente.
- Você tem que superar isso.
- Eu vou. Mas confesso que estou meio apavorado. Não gostaria de encontrá-la por aí. E esse é justamente um dos lugares que ela gosta de sair.
- Não pensa nisso. Vamos beber e falar besteira.
- Vamos sim, você está certo.
Naquele ponto eu ainda não sabia no enredo que eu estava metido com a referida ex namorada. Eu me mantinha ignorante quanto à maior parte das mentiras que ela tinha me contado. Portanto ainda me restava alguma esperança no coração de que fosse possível voltar aos bons tempos. Eu sempre fui meio idiota quando se tratava de mulheres e afetividade. Por algum motivo, quando estava apaixonado por alguém, eu perdia completamente minha racionalidade e passava a viver num conto de fadas cheio de idealizações.
Talvez Pablo tivesse um pouco disso, portanto ele nunca me julgou. Era exatamente por esse motivo que eu tinha atravessado a cidade apenas para poder conversar com ele.
Meu amigo era uma figura estranha. Magro, quase esquelético, de fala ágil e rebuscada. Era poeta, assim como eu. Mas enquanto eu tentava ser simples e despojado na minha escrita, ele era praticamente um clássico. Adorava uma referência à cultura e divindades gregas e de vez em quando soltava um latim no meio dos seus versos, coisa que eu não me via fazendo nos meus de forma alguma.
Apesar de ser sete anos mais novo do que eu e ainda conservar uma saudável imaturidade de jovem adulto, eu gostava de ouvir suas opiniões e sua visão de mundo, quase sempre contrastantes com as minhas.
Bruna voltou do banheiro e trazia em suas mãos duas latas de cachaça. Meu estômago se revirou só de olhar para a bebida. Eu não tinha mais idade para aquilo... eu ia me manter na cerveja e esperava não ficar muito mais bêbado do que eu já estava.
Fomos subindo as ruas que eu só estava acostumado a andar apenas na época do carnaval.
Sempre achei fantástica a visão das ruas vazias de Olinda, durante a noite. Bares, hotéis, ateliers abertos. Passantes ébrios, boêmios e moradores nas calçadas de suas casas.
Subi pensativo e calado enquanto Bruna e Pablo conversavam alegremente.
A cada passo que eu dava, flashes de situações passadas da minha vida surgiam diante dos meus olhos. Não sei os dois se perceberam dos meus devaneios existenciais, ou se estavam bêbados demais para notar, mas em algum ponto do caminho eu fui arrastado de volta para a realidade. O casal continuava conversando e sorrindo... completamente despreocupados.
Parei para comprar uma cerveja numa barraca de esquina, e voltei a acompanha-los.
Bruna olhou para mim e perguntou.
- O que você faz da vida mesmo, Rômulo?
Fui pego de surpresa pela pergunta, mas tentei responder de forma natural.
- Eu sou pesquisador.
- como assim?
- Eu sou biólogo. Estou fazendo pós doutorado atualmente.
- pós doutorado? Quantos anos você tem? – disse-me intrigada.
- Tenho trinta anos.
- Não parece de jeito nenhum. Você tem cara de vinte e poucos.
- Todo mundo diz isso. Não sei se fico feliz ou me incomodo.
Bruna riu e me deu o braço.
- Não seja bobo. Claro que é bom. Mas me diga, o que você faz no seu trabalho.
- Sou geneticista. Dou aula, faço pesquisa, oriento alguns alunos. Quebro uns galhos na universidade.
- Você é um cara importante então.
- Não muito. Mas a grana é razoavelmente boa e é só o que eu sei fazer da vida, além de escrever.
- Pablo disse que você escreve bem, mas eu nunca li nada.
- Uma hora eu te mostro algo. Mas a estética é bem diferente da dele.
Pablo me deu um sorriso safado e falou.
- Ele não gosta do meu jeito prolixo de escrever, esse safado acha que eu devia ser mais direto.
- Eu acho que você deve escrever do jeito que você gosta, Pablo. Você tem muito mais serenidade do que eu... acho que mais sensibilidade também. - Respondi.
- Agora sou eu que não sei se me incomodo ou acho bom. – Respondeu.
Rimos os três e seguimos pelo caminho, todos de braços dados.
Chegamos ao bar que Pablo estava bebendo antes de vir me buscar.
Lá dentro, alguns poetas conhecidos, de uma geração anterior a nossa, tocavam violão e confraternizavam.
Sentamos junto a eles e começamos a beber e tocar também.
A noite prometia ser agradável e minhas preocupações já iam se esvaindo.
Não lembro como a conversa começou, mas me peguei numa discussão levemente acalorada com Bruna sobre sexualidade.
Pablo saiu à francesa e me deixou no debate com sua garota e eu, como de costume, não larguei o osso e comecei a argumentar.
Por algum motivo, Bruna tinha uma impressão estranha sobe pan-sexuais.
Para ela, pansexuais eram pessoas promíscuas que transavam com tudo e qualquer coisa.
Ao ouvir seu ponto de vista eu retruquei.
- Pansexualidade não tem nada a ver com isso.
- E tem a ver com que? Ela respondeu visivelmente irritada.
- Pan sexuais são pessoas que se interessam por pessoas. Dependendo do contexto. Não se atraem por animais, ou objetos. Mas por todo o espectro de gêneros. Tanto heterossexuais, quanto homossexuais, bissexuais ou transexuais. E não necessariamente são promíscuos. Na verdade muitos deles são monogâmicos.
Bruna não pareceu aceitar minha argumentação e começávamos já a discutir sobre os pontos, quando uma mulher que estava fora da conversa se intrometeu.
- Ah, Acho que eu sou Pansexual então. Me achei bissexual durante toda minha vida. Mas pelo seu conceito eu me encaixo mais na tua definição.
Era uma mulher alta e magra. Morena escura, cabelos lisos e compridos. Parecia estar embriagada, mas não tanto quanto os outros presentes no bar.
- Só discordo da questão da promiscuidade. O que você tem contra promiscuidade. – Continuou.
- Não tenho nada contra isso.
- Do jeito que você falou pareceu que era algo negativo.
- Não necessariamente. Se for consensual e não envolver traições eu não vejo problema.
A mulher pareceu mais apaziguada e sentou-se ao meu lado.
- Acho que assim então eu posso sentar e conversar com vocês. A propósito, meu nome é Stefanie.
- Meu nome é Rômulo. E essa é Bruna. – Disse apontando para minha amiga.
Reparei quase instantaneamente que um dos caras que tocava violão próximo a nós, me olhou de cima a baixo enquanto eu interagia com Stefanie. Tive praticamente certeza de que eram um casal. O homem parecia ter entre quarenta e cinquenta anos. Já Stefanie parecia ser mais jovem do que eu.
Conversamos algumas generalidades e Bruna se levantou e foi procurar Pablo do lado de fora.
Cumprimentei Stefanie e segui para o lado de fora.
Fiquei um bom tempo conversando com Pablo sobre nossos projetos literários para o futuro enquanto Bruna fumava um cigarro desconfiada logo ao lado. Parecendo impaciente, ela retornou para junto das pessoas tocando violão,visivelmente irritada.
A noite foi passando e depois de algum tempo Stefanie se juntou a nós dois, e ai ficamos sabendo que ela também era escritora. Compartilhamos alguns dos nossos textos e os dela pareciam muito bons. Mais passionais do que os meus, mais diretos que os de Pablo.
A chuva apertou e nos obrigou a entrar novamente no bar.
Sentada, Bruna nos olhava com cara de poucos amigos e Pablo resolveu se sentar ao seu lado.
Continuei bebendo e conversando com Stefanie e descobri que o homem que tinha me encarado era seu marido. Apesar de que ela parecia despreocupada sobre este fato.
Comecei a achar que o olhar mais sério tinha sido coisa da minha cabeça.
Fomos nos perdendo na conversa e mal me dei conta de que Bruna saiu do bar, debaixo de chuva, com passos acelerados para o meio da rua.
Depois de algum tempo, também percebi que Pablo havia desaparecido.
Stefanie pediu para ir ao banheiro e vi que todas as pessoas que eu conhecia tinham saído.
Fui para o lado de fora e deixei a chuva cair sobre mim, me perguntando o que iria fazer no resto da noite.
Esperei talvez meia hora e já me preparava para ir embora, quando vi Bruna se aproximar, exasperada e com lágrimas nos olhos.
Ela veio até mim e me abraçou, sem dizer nada.
- O que aconteceu, Bruna?
- Pablo foi embora.
- Como assim? Achei que ele estivesse com você.
- Não! - disse-me, chorando e soluçando – Ele me deixou sozinha.
- Pablo não faria isso.
- Eu rodei Olinda inteira atrás dele. Mas não o encontrei.
- Ele deve ter ido procurar você. Você saiu sozinha mais cedo. Ele deve ter ficado preocupado.
- Pablo não se preocupa com nada. Ele é frio.
- Não Bruna. Talvez ele se expresse pouco, mas ele não é frio.
- Eu acho.
- Olha. Eu nunca o vi tão ligado em uma pessoa como o vejo com você.
- Eu não entendo aquele homem.
Sentei junto com Bruna na beira de uma calçada e a abracei, tentando consolá-la.
- Ele vai voltar. E você vai ver que isso tudo foi só um engano.
Bruna me deu um sorriso amarelo e ficou olhando para o chão.
Logo em seguida vi Pablo correndo em nossa direção, visivelmente preocupado.
- Onde você estava mulher?
- Fui procurar você, idiota.
- Acho que foi só um desencontro, cara – Eu respondi tentando mediar.
Bruna se levantou e os dois se abraçaram.
Eu me perguntei como a noite tinha chegado àquilo.
Os dois pareciam muito bem juntos, mas havia algum tipo de tensão não comunicada entre eles.
Algo que eu experienciei algumas vezes na minha vida... principalmente nos meus casos mais tórridos.
Era bonito vê-los juntos. Apesar de serem tão diferentes entre si.
Resolvi dar a noite por encerrada.
Abracei-os e disse que iria embora.
Já passava das 3 da manhã e eu tinha muito o que pensar sobre minha vida.
De fato eu tinha.
Muitas coisas aconteceram nos dias que se seguiram e eu descobri em que tipo de cilada eu tinha me metido nos últimos dois anos.
Tem certas verdades inegáveis na vida, e coisas que acontecem, queiramos ou não.
Eu não estava ciente ainda, mas aquela noite seria um ponto de virada para mim.
Possibilidades foram abertas diante dos meus olhos
só faltava eu percebê-las.