A realidade da perda
Thiana vivera em família de classe média baixa, sempre rodeada de bons amigos. Costumava valorizar as pequenas coisas da vida e não raras vezes ouvia de amigos que puxara ao pai em se tratando de temperamento e modo de vida.
Por quatro anos e meio viu seu pai definhar numa cama vítima de um acidente vascular cerebral. Em plena adolescência, a dificuldade de aceitação foi grande e, em razão disso, costumava lidar com ele como se nada tivesse acontecido. Lia jornais, brincava, inventava histórias e muitas vezes nem percebia que ele não a estava escutando.
Num sábado de Páscoa, após um grito de sua mãe, Thiana caiu em sí que seu pai estava morrendo. Correu para o quarto dos fundos da casa e lá se trancou.
Depois de aproximadamente duas horas uma vizinha muito próxima conseguiu tirá-la do quarto, graças à calma e muita conversa. Thiana estava transtornada, rosto inchado de tanto chorar, cambaleando como se estivesse bêbada e emitindo palavras em tom tão baixo que a vizinha não entendia. O corpo de seu pai já havia sido retirado para o velório e Thiana não conseguia olhar para a porta do seu quarto. Naquele momento era impossível imaginar que, adentrando aquela porta, não mais encontraria o seu pai. Culpou-se, desta vez aos gritos, de não ter entendido o seu estado, de sempre tê-lo forçado a dizer que estava melhorando, que fora infantil e pouco auxiliara a mãe nesse período. E aos gritos ficou, batendo com força na mesa da sala de jantar que ainda abrigava uma caixa de remédios que eram ministrados diariamente nele.
Ao longe ouviu uma voz familiar que dizia: “Chore, extravase a tua tristeza, coloque para fora tudo o que quiseres. Eu vim para ficar contigo”. Era Marcio, seu ex namorado, o cara que ela amara por quatro anos, fizera tantos planos mas, subitamente, descobrira que ele nada mais era do que um homem de várias mulheres. Recebeu das suas mãos uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida e um pequeno bilhete com as seguintes inscrições: “A morte é só uma passagem. Por favor, desta vez acredite em mim”.
Agradeceu a medalhinha, embarcou no carro e rumou para o velório, sem olhar para trás.
Foi duro despedir-se fisicamente de seu pai, o homem que a ensinara a ser o que era, o seu companheiro, o seu ídolo.
Apoiada por amigos e primos, Thiana sentiu-se confortada, mesmo com tamanha dor.
Eram tantos abraços de condolências que Thiana cansou. Resolveu sair do recinto e tomar um ar, olhar para o céu e pedir a Deus compaixão. Subitamente esbarrou no seu tio, irmão de seu pai, o homem que o havia roubado em uma sociedade mal administrada, o homem que nunca, no período da doença, ousara visitar ou mesmo questionar como estava o irmão. Dos olhos de Thiana, mesmo naquele momento de tamanha vulnerabilidade, saíram faíscas de ódio que desconcertaram o tio.
Com olhar baixo ele retirou-se e Thiana, ainda indignada com o inesperado encontro, resolveu sair do recinto para respirar. Passagens com seu pai viajavam por sua cabeça: tantos carinhos, tanto esforço, tanta dedicação para acabar assim. Como ficaria sua família? Como ela se sentiria sem o seu fio condutor? Seu pai sempre fora um exemplo de homem de caráter, um homem com infância sofrida e muita batalha para colocar as filhas em um patamar onde ele nunca esteve. Vazio!
Após o funeral, de volta para casa, decidiu que, se até então tinha conduzido sua vida da melhor forma, a partir dalí faria ainda mais. Seguiria os conselhos de seu velho pai e seria exemplo de dedicação, amor e vida. De súbito, percebeu que as situações são frágeis demais se tratadas com orgulho, descaso e ausência de amor. A efemeridade da vida provou que nada, absolutamente nada vale a pena se não for bem e dignamente vivido. Continuaria sendo o orgulho de seu pai.
Maio.2017