O CASO DO SARGENTO JONAS

Nota: Dramatização livre baseado em um fato real

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Era início do mês de agosto de 1976, período da seca, como se diz no norte, numa pequena cidade, não mais que sete mil habitantes, ao norte do então Estado de Goiás, hoje Estado do Tocantins, às margens da recém asfaltada Belém-Brasília, parte da BR-153. Uma época em que lugarejos, consideradas cidades, distanciavam no mínimo 100 km uma da outra e sequer tinham rede elétrica; a iluminação nas casas era feita por lamparinas ou lampiões a gás. Eram praticamente isoladas, sendo até há pouco, estrada de chão, praticamente uma aventura chegar a tais lugarejos. Apesar de ser uma comarca, não se sabe o motivo de não haver naquela cidade uma estrutura da lei com juizado e promotoria. Apenas um grupamento de policiais militares, comandados pelo Sargento Jonas, eram encarregados de manterem a ordem e, às vezes, aplicar penas baseando-se apenas em seus parcos conhecimentos ou simplesmente pela própria interpretação dos costumes locais, ou ainda, quando o prefeito solicitava sua intervenção, atendendo a este sem muita convicção. O Sargento Jonas considerava-se a autoridade maior, porque no seu entendimento era a lei em pessoa. Ouvia as queixas, prendia e sentenciava como bem entendia. Os três ou quatro advogados que ali residiam, atendiam apenas a quem podia pagar, geralmente fazendeiros, pra intervir em algum excesso por eles praticado; neste caso deslocavam-se à comarca mais próxima dali, cerca de cem quilômetros.

Em geral os excessos do Sargento Jonas eram aceitos por todos. Naquela cidade havia todo tipo de gente, ladrões, pistoleiros bancados por fazendeiros, mas ele, de certa forma, conseguia manter a ordem. Vez ou outra investigava assassinatos, que quase sempre dava em nada, porque os suspeitos fugiam em direção ao Pará. Entrementes isso, recolhia os bêbados de costume para passarem a noite na cadeia, indo sem reclamarem, e outros que pela coragem, desconhecimento do sistema do Sargento ou insanidade causada pela bebida resolviam resistir; recebiam o “banho” de cassetete e tapas na cara; iam pro xilindró assim mesmo, levados a pontapés.

Cerca de quinze dias antes, fora chamado ao mercado municipal pra resolver uma pequena discussão entre uma mulher e o dono do açougue. Uma discussão boba sobre o troco que aquela senhora havia recebido, e no seu entender não condizia com o peso e qualidade da peça recebida.

- Idalina. É você que está causando essa confusão toda? – indaga ele.

- Esse sujeito aqui tá pensando que sou trouxa. Pedi carne de primeira e ele embrulhou de segunda, e ainda me cobra mais por isso.

Sargento Jonas pega o embrulho e o abre, constatando o “equívoco” do açougueiro. Ele dá um tapa na cara do comerciante.

- Tá pensando que não entendo de carne, seu filho da puta. Isso aqui é carne de segunda.

- Não é não, sargento. Isso é colchão mole, carne de primeira.

Recebe outro tapa na cara, enquanto os curiosos já se aglomeravam nas proximidades.

- Troca a carne pelo que ela pediu. E como punição ela vai levar de graça. Ou vai querer levar a pendenga pra frente?

O açougueiro não diz mais nada, trocando a mercadoria e a entregando a Idalina.

O Sargento a acompanha até a saída do mercado.

- Essa quantidade aí dá pro almoço? – pergunta ele.

- Dá sim. Estou só em casa. Firmino foi fazer um roçado na fazenda de Seu Teobaldo. Só volta amanhã de tardezinha.

Era a resposta que ele esperava.

- Capricha então que eu tô com uma fome arretada – diz piscando um olho pra ela, que sorri e apressa-se em preparar o almoço.

Uma hora depois ele se deleita com uma mesa farta, lógico, sem faltar o bife acebolado que tanto apreciava. Principalmente quando Firmino saia pra trabalhar, passando alguns dias fora. Como sempre, quando isso acontecia, passavam a tarde toda na vadiagem. Como se diz por aí: o corno é sempre o último a saber. Firmino nem desconfiava das atividades da esposa enquanto ele estava fora.

Cinco dias depois recolhe um sujeito chamado Santino, conhecido pistoleiro de aluguel, por este ter exagerado na bebida e iniciara discussão ameaçando a todos os presentes naquele bar, obrigando todos a beberem da cachaça que tomava enquanto colocava a mão na arma presa na cintura.

- Bebe que eu tô mandando.

Alguns apreciavam a bebida, aceitavam de bom grado, sem reclamar. Outros haviam que haviam ido ali apenas pra comprar um biscoito ou enlatado, reagiam mal, mas bebiam assim mesmo, incentivados quando Santino colocava a mão na arma.

Sargento Jonas, chega por trás, sem ser percebido, e encosta sua arma na nuca de Santino.

- Acho melhor não tocar nessa arma de novo.

Com a outra mão toma a arma do pistoleiro.

- Vem comigo. Vai passar essa noite no xadrez pra aprender a respeitar as pessoas de bem.

Santino ameaça recusar o “convite” e recebe um tapa na nuca, sendo impulsionado pra frente. Ele volta-se e olha pro sargento, que aponta a arma pra ele. O pistoleiro não teve outra alternativa senão segui-lo. Lá foram, Jonas em sua caminhonete C-10 vermelha, arma na mão esquerda, apontada pro prisioneiro que acompanhava a pé, meio cambaleante pelo efeito do álcool, ao lado da viatura, com plateia, pelos quatro quarteirões até a delegacia. Santino sentia-se humilhado pelo tratamento recebido na frente de tanta gente. O sargento o colocou na cela dois, e colocou a chave no cabide, na parede atrás de sua mesa, esquecendo-se dela por uma semana, quando decide liberar Santino. Este saiu sem dizer uma palavra. Ouve apenas uma última frase do Sargento Jonas:

- Espero não te ver mais por essas bandas, ou vai passar outra temporada de molho.

Três dias depois, o sempre bem informado sargento soube que o marido de Idalina havia pego um serviço de roçado em uma fazenda próxima. Ficaria dois dias fora. Desta vez ele mesmo levou uma rabada pra que sua amásia fizesse pra ele. Como sempre passaram a tarde toda na farra.

- Porque não dorme aqui hoje? – pergunta Idalina – Firmino vai ficar dois dias fora.

- Infelizmente não posso. Gostaria mas não vai dar. É sábado e preciso fazer ronda pelo mercado. Geralmente dá confusão neste dia, mas mesmo assim dispensei quase todos os soldados hoje, pra irem à festa de aniversário da filha de um deles. Cabo Gomes tomará conta da delegacia, cuidando dum cabra ruim que prendi ontem. Eu mesmo farei a ronda hoje.

Sargento Jonas sai da casa de Idalina pouco antes das sete horas da noite, indo direto pro mercado municipal, que apesar da maioria dos boxes estarem fechado, um bar interno era mantido aberto até por volta das dez horas. Além deste, na esquina havia outro, e mais um na esquina em frente, que ficavam abertos enquanto houvessem clientes. O Sargento ia de uma pra outra, impondo presença e aproveitando pra tomar uma “cervejinha” oferecida por frequentadores que queriam fazer média com ele. Lá pelas dez horas, sentindo-se cansado, resolvera tirar um cochilo em sua camionete, estacionada na lateral do mercado, pra depois continuar sua ronda. Olha logo à frente, e vê a iluminação do lampião a gás no andar de cima da casa daquele açougueiro com quem discutira dias atrás. Ele se lembra do fato, mas procura esquecer-se disto. Precisava apenas descansar um pouco. Deita-se no banco com a cabeça voltada para o lado do banco do passageiro, sente sua arma incomodando pela posição em que deitara, a tira do coldre e coloca sobre o painel do carro. Não demora entra em sono profundo, cedendo ao cansaço causado pela tarde de vadiagem com Idalina e da cerveja oferecida a ele.

Meia hora depois, um dos bares também fecha, deixando a rua ainda mais escura. O açougueiro também apaga o lampião. Uma iluminação mínima vinha do outro bar que persistia um pouco mais por haver dois clientes por ali. Pelo outro lado da rua um vulto movimenta-se sorrateiramente. Com cuidado aproxima-se da C-10. Ouve o ronco da pessoa lá dentro. Olha pela janela do veículo e o vê deitado. Percebe a arma sobre o painel. Lentamente espicha o braço, alcançando a arma, empunhando-a e encostando o cano na cabeça do Sargento Jonas. Puxa o gatilho. Alguns cães começam a latir, assustados pelo barulho do tiro. O sujeito joga a arma sobre o corpo e corre, voltando pelo mesmo caminho em que chegara ali. No bar todos ficam em silêncio por alguns instantes, como que decidindo o que fazer. Aguardam mais um pouco, tentando identificar algum movimento por ali que explicasse o motivo daquele tiro. Pouco depois o dono do bar aproxima-se dos clientes:

- Sargento Jonas não disse que ia tirar um cochilo por ali?

- Sim. E acho que o tiro veio de lá. Será que foi ele quem atirou?

- Se ele tá lá, acho que não há perigo algum ir dar uma olhada se tá tudo bem.

O dono do bar pega a lanterna e anda metade do caminho.

- Sargento! – grita ele.

Nenhuma resposta. Com cuidado aproxima-se do carro e ilumina lá dentro. Logo percebe o que aconteceu ali.

- Minha Nossa Senhora! Mataram o Sargento.

Um dos clientes dele estava se aproximando e ele grita novamente:

- Mataram o Sargento Jonas! Corre na delegacia e avisa os soldados. Depressa!

O rapaz volta ao bar e pega sua bicicleta, seguindo em direção à delegacia. Nas casas próximas, os moradores começam a acender suas lamparinas. O açougueiro traz o lampião pra perto do carro, deixando o local iluminado. Não demora muito e uma turma de curiosos se aglomera no entorno do carro, cada qual querendo tirar alguma informação a mais de outro.

Dez minutos depois, o rapaz que fora dar o alarme na delegacia, retorna:

- Não tinha ninguém lá “não”. A delegacia “tava” vazia e tudo no escuro.

- Mas ele tinha me dito que o Cabo Gomes tava de plantão hoje.

- Se tava de plantão, só se for em outro lugar. Lá num tem ninguém!

- Na casa do Soldado Fabrício – lembra-se ele – O sargento me disse também que é aniversário da filha dele. Pode ser que ele tenha ido pra lá.

Cabo Gomes chega cerca de vinte minutos depois, acompanhado de outros três soldados à paisana. O dono do bar se adianta:

- Cabo Gomes, mataram o Sargento Jonas...

- Isso eu já tô sabendo. O rapaz me adiantou alguma coisa. Quero saber se alguém viu quem foi que deu o tiro nele.

- Estava escuro aqui. Só ouvimos o tiro. Quando vim dar uma olhada, já tava aí o acontecido.

- E esse pessoal todo aqui? Não viram nada? – pergunta dirigindo-se a todos ali.

Sem falarem nada, apenas balançam negativamente suas cabeças. Gomes corre com o olhar por todos ali. Nota a presença do açougueiro e lembra-se da história contada pelo sargento, duas semanas atrás. Vai até ele:

- E você? Não viu nada? Mora aqui perto, que eu sei.

- Não vi nada “não”. Já tinha ido dormir e acordei com o barulho do tiro.

Gomes bate com o indicador no peito dele.

- É, mas sei que andou se desentendendo com ele. Motivo tinha... E oportunidade também.

- Que isso, Cabo! Tô até de pijama. Num sei de nada não.

- É verdade – intervém a mulher do açougueiro – A gente já tava dormindo quando houve o tiro.

O cabo olha pro dono do bar e este confirma:

- Pode ser verdade, Cabo. Depois que cheguei aqui ele já tinha acendido o lampião e apareceu na janela olhando aqui pra baixo.

- De qualquer forma – responde Gomes – é melhor irem se dispersando que precisamos analisar o local. Vão pra casa. Todos vocês. Deixem a gente trabalhar.

As pessoas afastam-se mas ficam observando à distância, mantendo a curiosidade sobre o ocorrido.

Gomes vai até o carro e acende a lanterna interna, mas não adianta muito. Manda que o Soldado Fabrício pegue o lampião e o traga pra perto, tendo melhor iluminação. Vê o brilho da arma entre o corpo e o banco e sem se preocupar com detalhes de impressão digital, pega a arma.

- É a arma do sargento. Desgraçado! “Matou ele” com a própria arma.

Dá mais uma olhada sem encontrar nada que pudesse servir como pista do autor do disparo. A posição da arma e o local atingido na cabeça descartava a hipótese de suicídio.

- Temos que agir rápido. Esse cabra num pode escapar.

Com a morte do sargento, Cabo Gomes se torna a maior autoridade policial no local, cabendo a ele tomar todas as decisões. Dá ordens aos outros soldados pra chamarem a funerária e recolherem o corpo, deixassem o carro onde estava e depois seguissem até a delegacia pra organizarem uma busca pela cidade. Ele e Fabrício iriam na frente.

Assim que chegam, Gomes manda que Fabrício ligue o motor a gasolina, gerando energia que iluminava a delegacia. Luzes acesas, ele olha pra cela um e vê o bêbado que recolhera naquela tarde, dormindo, mesmo com todo o barulho do motor. A cela dois estava vazia.

- Mas que diabos...! Cadê o outro cabra, o Denilson, que tava na cela dois?

Gomes entra na cela um e chacoalha o bebum pra acordá-lo.

- Ahn... Já amanheceu?

- Amanheceu nada. Quero saber o que aconteceu aqui. Como foi que o cara da cela ao lado conseguiu sair.

- Eu não sei de nada... Nem vi nada...

Gomes dá um safanão nele.

- Ei... Num tenho nada com isso. Foi “aquele outro lá...”

- Aquele outro quem?

- Aquele que ficou uns dias descansando aqui, dez dias pra trás... Aquele do cabelo vermelho...

- Santino?

- É... Acho que foi disso que o preso “chamou ele”.

Gomes olha pra Fabrício.

- Então pode ter sido ele.

- Eu não – responde o bebum.

- Não enche saco, pudim de cachaça. Sai logo daqui. Vá dormir em casa que não quero ninguém por aqui me perturbando. Tenho coisa mais importante a fazer.

Gomes havia saído da delegacia por volta das cinco horas da tarde. E naquele momento Denílson estava na cela.

O bêbado sai naquele passo lerdo. Ao mesmo tempo chegam os outros dois soldados. Gomes já dá as ordens:

- Temos dois suspeitos já. Santino e Denílson. Peguem a viatura e vasculhem cada bar e cada cabaré desta cidade. Achem aqueles dois. Podem começar pelo “folha” (região onde se concentrava os cabarés da cidade), entrem em qualquer quarto, falem com toda puta que encontrarem. Alguém dever ter visto ou falado com eles.

Os dois soldados dão batida em todo o bairro do baixo meretrício. Finalmente conseguem de um dos frequentadores alguma pistas dos suspeitos:

- Olha, vi dois caras com essa descrição aí em um corcel prata, seguindo pela estrada pra Couto Magalhães.

- A que horas foi isso?

- Devia “de” ser umas cinco e meia da tarde.

Os dois policiais voltam pra delegacia.

- Se foi nesse horário, não podem ter sido eles – observa Fabrício.

- Mas podem ter apenas se escondido por aí e retornado pra dar cabo do sargento, esperando o momento oportuno.

- Neste caso, porque deixariam a arma pra trás?

- Vá saber – responde Gomes – De qualquer forma, melhor telegrafar pra Conceição do Araguaia pedindo notícias se foram vistos por lá. Se foram na direção de Couto, com certeza atravessaram pro Pará e a próxima cidade é Conceição. Faça isso já, cabo.

Passam a noite em claro, aguardando alguma notícia. Os outros dois policiais continuavam rondando pela cidade, indo até a rodovia, perguntando nos postos de combustível, sobre os suspeitos. Ninguém os vira.

Já eram quase sete horas da manhã e estavam todos na delegacia quando recebem mensagem de Conceição informando sobre os suspeitos. Haviam sido mortos pelos seguranças do prefeito daquela cidade, quando atentaram contra a vida dele. Na mensagem mencionavam também o horário do acontecido: Nove e quarenta da noite.

- Diacho! Se estavam lá às nove e quarenta, não poderiam estarem aqui às dez da noite – conclui Gomes – Então não foram eles.

- Voltamos à estaca zero – comenta Fabrício.

Uma hora depois chega na delegacia um mensageiro do único hospital da cidade. Ele relata que no início da noite anterior uma mulher havia sofrido uma de tentativa de homicídio por “peixeira” e havia dado entrada no hospital. A vítima sobreviveu por milagre.

- E porque não comunicou o fato ontem mesmo?

- Estive aqui, mas não encontrei ninguém. Não podia esperar e deixei pra vir aqui hoje. Acabei meu plantão e vim direto pra cá.

- E “ela” disse o nome “dela”?

- Ela não está em condições de falar. Sobreviveu por milagre. Está sendo mantida sedada – faz um breve suspense e continua – Mas uma das enfermeira a reconheceu. O nome dela é Idalina.

- Idalina? Eu conheço uma Idalina, moradora na Rua Três. É essa?

- Pelo que a enfermeira disse, é essa mesma.

Gomes não a conhecia pessoalmente, mas sabia do envolvimento dela com o Sargento Jonas. Tinha que verificar todas as possibilidades; e essa poderia ser uma boa pista.

- E o marido dela? Estava na cidade?

- Pelo que ouvi da vizinha que a socorreu, ele está trabalhando na fazenda de Seu Juvenal. Nem sabe do ocorrido ainda... Acho eu.

- Melhor verificar, Fabrício. Pegue outro soldado e vá até lá. E se encontrá-lo, traga-o de qualquer jeito. Direto pra cá.

O Soldado Fabrício retorna de sua missão pouco antes do meio-dia. Transmite ao cabo tudo que apurara. Firmino da Silveira não se encontrava na fazenda. Estivera lá sim, duas semanas antes, sendo dispensado logo em seguida. Havia sido requisitado pra outro trabalho naquele dia, mas sequer apareceu.

- Diacho! – exclama Gomes – Vamos já pra casa dela, perguntar pela vizinhança. Talvez consigamos alguma pista... Um detalhezinho que seja, que possa nos dar a direção dele.

Seguem todos pra casa de Idalina. Abrem gavetas, armários, cômodas... Nada encontram. Os únicos sinais de que houve violência por ali, eram o sangue da vítima no chão da cozinha e alguns pratos quebrados. Decidem então por interrogar os vizinhos. Descobrem apenas, por um dos vizinhos, que fora visto passando pela rua, por volta de meio-dia. Gomes vai a uma mercearia a duas quadras dali .

- Sim... – responde o dono da mercearia – Tomou uma cachaça e disse que ia almoçar em casa.

- E não o viu mais?

- Ele voltou uns... Quinze minutos depois. Parecia nervoso. Pediu outra cachaça, bebeu num gole só e pediu outra. Não conversou mais comigo. Ficou mais um tempinho aí na porta e saiu. Daí já “não vi mais ele não”.

- Sabe me dizer de onde ele era, antes de vir morar aqui?

- Olha... Há um tempo atrás ele me falou que era de Pedreiras, no Maranhão, e que era doido pra voltar pra lá...

Gomes agradece e reúne seu pessoal, transmitindo o que descobrira.

- É bem possível que ele tenha ido pra Pedreiras. Quero que descubram se conseguiu alguma carona. Provavelmente lá no Posto Mil. Lá é a saída pro norte. Se foi pro Maranhão deve ter passado por ali.

Soldado Fabrício sai em direção ao posto de gasolina, na saída norte da cidade. Retorna meia hora depois:

- “Vê”, eles não viram, mas um conhecido que estava por lá, disse que quando estava vindo de Estreito, passou por ele a uns trinta quilômetros aí pra cima.

- Ele disse a que horas isso aconteceu?

- Por volta de meia-noite.

- Então ele tá fugindo a pé. Se a gente for rápido consegue pegá-lo antes que chegue ao Maranhão. Ele terá que parar pra descansar e a gente alcança o desgraçado.

Antes de saírem no encalço de Firmino, passam no velório do Sargento Jonas. O local estava apinhado de gente. Estando presente, inclusive, este que vos escreve. Gomes cumprimenta a viúva dando alguns detalhes sobre o que iriam fazer. Menos de cinco minutos depois partem, pegando a rodovia, indo pro norte.

Logo a notícia se espalha, deixando todos na cidade ávidos por novidades sobre a caçada ao assassino do Sargento Jonas. As atualizações eram feitas por rádio e repassadas de boca em boca, deixando todos a par da situação. Claro que nessa corrente de notícia, uns ficavam sabendo antes e já vinha outra notícia, espalhadas por outros, virando uma confusão de comunicação, misturando notícia nova com antiga. Na cidade, o assunto era esse em qualquer roda de amigos. “Estão próximos de Nova Olinda. Ele passou por lá” - “Mas não tinham ido por Palmeirantes?” – “Isso foi antes. Viram que estavam errados e voltaram” – E nesse desencontro de notícias velhas com notícias novas iam se atualizando e montando toda a trama.

No dia anterior, por volta de meio-dia, Firmino toma uma cachaça na mercearia perto de casa e sai. Deveria ter ido trabalhar mas resolvera tirar uma dúvida que o perseguia, após ouvir alguns comentários, aqui e ali.

Caminha a passos lentos em direção de sua casa. De longe, pouco além de sua casa ele vê uma caminhonete vermelha parada sob a sombra de uma árvore. “Então pode ser mesmo verdade”. Aproxima-se da entrada da casa e ouve a voz de Idalina. Pouco depois reconhece a voz do Sargento Jonas. Fica sem saber o que fazer. O Sargento tinha fama de ser truculento e... Andava armado. Firmino não tinha sequer um canivete pra enfrentar o adversário. Firmino segue em frente, indo até o carro, na esperança de que Jonas tivesse esquecido alguma arma por ali. Nada. Volta à mercearia, toma mais dois goles de cachaça. “Que merda que eu sou!” – pensa ele – “A mulher me pondo os cornos e eu sem fazer nada. Ele é bem capaz de atirar em mim, o filho da puta. Ele e ela, dois filhos da puta. Mas isso não fica assim não”.

Firmino sai da mercearia e entra num lote vago, sentando-se ao pé de uma mangueira. Sentia-se revoltado consigo mesmo por não ter coragem de enfrentar o Sargento, com medo de morrer baleado. “E é bem capaz dele fazer isso mesmo”. Acovardara, mas não deixaria barato tudo aquilo que estavam fazendo com ele. “Idalina não podia fazer isso comigo. Se ela não desse mole pra ele, isso não estaria acontecendo. A culpa é mais dela do que dele”. Passa a tarde pensativo, com o ódio lhe corroendo por dentro. Decidira que iria embora dali. Iria abandonar Idalina. Se ela queria outro, ele que a sustentasse. Mas antes de ir, pelo menos diria isso na cara dela.

Começava a anoitecer. Ouve o barulho do motor da caminhonete sendo ligado. Percebe que o Sargento Jonas tinha ido embora. Enche-se de coragem e vai até sua casa, decidido a pegar suas coisa e abandoná-la. Assim que entra:

- Firmino! Mas... Você não ia voltar só depois de amanhã?

Ele nem olha pra ela, ido direto pro quarto. Começa a pegar seus pertences pessoais, documentos e vai colocando na mochila.

- O que foi, Firmino? Por que tá arrumando suas coisas?

- E ainda pergunta, sua vadia? Pensa que já num sei de seu caso com aquele merda do sargento?

- Quem disse isso? Só pode ser falação desse povo que não tem nada pra fazer.

- Ninguém disse. Eu vi, Idalina. Vi que passaram a tarde toda na fornicação. Enquanto eu saio pra trabalhar você fica me corneando por aí.

Ela muda de tática.

- Eu não tive culpa, Firmino. Foi ele que ficou me assediando.

- E você, pelo visto, gostou da ideia. Você não presta, Idalina. Tô indo embora. Ele que te sustente.

- Você não pode fazer isso. Não tenho mais ninguém por aqui. O Jonas nunca que iria me sustentar. Vai me abandonar também. Eu vou com você e a gente esquece tudo isso.

Ele se vira e, sem pensar, dá um tapa na cara dela.

- Tá louca? Acha que tenho vocação pra ser corno?

Dá outro tapa e ela cai no chão. Ele a chuta. Pelo ódio que estava sentindo, não conseguia se segurar. Queria sair logo dali, antes que fizesse alguma besteira.

Idalina consegue se levantar e vai à cozinha. Ele a segue. Ela pega uma faca e tenta golpeá-lo. Firmino se esquiva, conseguindo segurá-la pelo braço e tomando a faca de sua mão. Ele age mais pelo ódio que estava sentindo. Não conseguia raciocinar direito. Quando cai em si, ela já estava estirada no chão. Olha pra sua mão com a faca, suja de sangue. Ele lava a mão na pia da cozinha. Levaria a faca consigo. Dá uma última olhada em Idalina, pega sua mochila e sai.

Pensa no Sargento. Uma faca seria pouco pra enfrentar uma arma de fogo. A não ser que estivesse próximo e o pegasse de surpresa. Mas logo desiste da ideia. Tinha que sair logo da cidade, antes que fosse caçado por ter esfaqueado Idalina.

Já estava escuro. Passa pelo posto sem que ninguém o notasse. Um pouco mais à frente, no alto do morro, para e passa um bom tempo pedindo carona. Nove e meia da noite, consegue alguém que o levaria por cerca de vinte e cinco quilômetros, onde entrariam pra esquerda. Firmino desce ali, agradece e continua sua fuga a pé.

Caminha até as quatro da manhã. Cansado, encosta-se em uma árvore ali perto e dorme por duas horas.

Acorda com o dia clareando. Põe-se de pé e continua sua fuga. Às vezes parava quando via alguma choupana à beira da rodovia pra pedir água ou algo pra comer. Outras vezes conseguia carona por pequenos trechos de dez a quinze quilômetros.

Quatro da tarde, atravessa a ponte sobre o Rio Tocantins, chegando finalmente ao Maranhão, cidade de Estreito, parando logo depois em uma barraca que vendia frutas, na beira da estrada. Pede um pouco d’água e pergunta se sabia de algum veículo que seguiria em frente. Tendo resposta negativa, segue em frente. Quando passasse algum carro pediria carona. Caminha mais lentamente agora. Leva quarenta minutos pra percorrer três quilômetros.

Dois quilômetros pra trás, uma viatura atravessava a ponte sobre o rio que separava os dois Estados.

- Será que podemos fazer isso, Cabo? Lá já é o Estado do Maranhão. Não podemos fazer nada lá.

Gomes apenas o olha com ar de reprovação pela observação inoportuna. Atravessam a ponte e param na barraca de frutas. A moça dá a informação aos dois.

- Ele está perto. Vamos logo!

Pouco depois avistam alguém pedindo carona à beira da estrada.

Quando Firmino percebe quem eram os ocupantes do veículo, tenta fugir pro meio do mato. Gomes corre atrás e atira pro alto. Firmino para.

- Cabra de merda! – diz Gomes – Pensou que iria conseguir fugir depois de tudo que fez?

- Eu não tive culpa. Ela que me atacou primeiro.

- Eu num tô falando de sua mulher, seu corno. Tô falando do tiro que deu em Sargento Jonas.

Firmino não tem nem tempo de contestar. Gomes o atinge com a coronha do revolver e ele desmaia.

- Vamos jogar esse filho da puta no porta malas. Depois avisa pelo rádio que capturamos esse merdinha.

Na cidade todos acompanhavam as buscas através das notícias transmitidas por rádio, e depois eram rapidamente espalhadas boca a boca.

Eram cinco horas da tarde quando chegaram à delegacia. Jogaram Firmino na cela dois. Iriam comunicar primeiro à viúva sobre a captura; questão de honra. Depois comeriam alguma coisa e voltariam para o “interrogatório”.

No dia seguinte, no mercado, um grupo comentava sobre como ele havia apanhado, das sete da noite às cinco da madrugada. Todo inchado, parecia que nem sentia mais as pancadas que recebia. Foi quando Gomes pegou o fuzil e encostou no peito dele e puxou o gatilho. Ao que parece, nem mesmo o prefeito argumentou contra a atitude dos policiais. Para a maioria da população eles agiram de forma correta e fizeram justiça.

Sentado em um banco de madeira, o açougueiro ouvia atentamente os relatos de um grupo de pessoas que se formara ao lado de seu açougue. “Antes ele do que eu!” – pensou ele – “Quero ver agora, aquele filho da puta do sargento bater na cara do capeta. Aquele miserável, cão sarnento...”. Depois sorriu em como fora fácil enganar a todos. Descera de pijama mesmo. Atirara no sargento, correra de volta, no tempo certo de acender o lampião. Nem mesmo sua mulher percebera que ele havia saído. Foi no tempo exato dele chegar à janela com o lampião e o dono bar chegar, podendo testemunhar a seu favor.

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 27/05/2017
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