ACONTECE
ACONTECE...
- Não tenho um puto no bolso! Saco! Que é que eu posso fazer? – berrou Otávio.
Gabi não respondeu. Chorou. Tinham tantas esperanças. Foi para a cozinha. Ficou olhando para os cantos. Imóvel. A barriga pesando volumosa. Oito meses. Mais um mês...
- Vou no bar tomar uma cerveja!
- Prá bebida você tem dinheiro!
- Tenho não! Boto na conta.
- Por favor, não vá!
Não atendeu a súplica. Saiu batendo a porta com força.
***
Estavam casados há três anos. No começo tudo era bom. Alugaram pequeno apartamento. Tinham fogão, geladeira, aparelho de som e TV, presentes dos padrinhos. Sala, quarto, banheiro e cozinha. Tudo minúsculo. Tudo limpo. Suficiente. Evitaram filhos. Fizeram economia. Com o Fundo de Garantia de Otávio deram entrada na casa própria. Uma casinha branca, rodeada de outras iguais, no conjunto habitacional. Dois pombinhos no pombal. Sentiram-se orgulhosos.
***
Voltou meio alegre. Nem sóbrio, nem bêbado. Rotina. A mulher dormindo. O barrigão saliente. Obsceno. Sentiu nojo. Deitou de roupa no sofá de plástico vermelho. Revirou sem conseguir dormir. Calor. O suor grudando. Resolveu tomar banho frio. Sentiu-se melhor. Surpreendeu-se com uma ereção. Pensou: - não vai dar. Ganhou de novo a rua.
***
Acordou apalpando a cama. Viu que estava só. Acendeu a luz. Quase meia-noite. – Pra onde aquele puto foi! Não podia ficar sozinha. E se a criança resolvesse nascer antes da hora? Levantou-se. Foi no banheiro. Mijou. Lavou as mãos e o rosto. Não podia ficar daquele jeito. O puto do marido não ligava mais para ela. – Será que tem outra? A loira aguada, a Selma, tava dando em cima dele. Vaca! Faz quatro... cinco... seis meses que não me procura. Também não tenho vontade. Pudera, com esse barrigão! Mas ele tem que agüentar! Tem obrigação.
***
- Mais uma branquinha, pra quebrar o gelo e outra cerveja. Isso aqui tá muito bom.
Nos fundos, um mulato dedilhava um violão. Um viajante cantava, imitando Nelson Gonçalves. Uma mesa com duas moças. Uma delas, a loirinha aguada, Selma. A outra, uma mulata clara, quase branca, de cabelos lisos e cara de tesão.
- Põe na conta! Começo de mês acerto tudo.
Do balcão, Otávio apreciava a cantoria e flertava com as moças. A mulata lhe mostrou a ponta da língua. Sentiu o membro avolumar. Poderia tentar uma aproximação, mas como fazer sem dinheiro? Motel não faz fiado. Lembrou da mulher em casa. Sentiu pena. Mais um mês e estaria tudo resolvido. Vai ser uma menina. O serviço público da cidade estava avançado. Tinha feito ultra-som. Mas, que diabo! Não estava agüentando mais. Precisava de mulher. Precisava descarregar. Resolveu voltar para a casa. No banheiro se masturbaria.
***
- Bêbado! Filho da puta! Chega de madrugada cheirando a mulher!
Tapas, arranhões, gritaria. Os vizinhos acendendo as luzes. Um deles grita: - Vamos parar com essa baixaria. Eu tenho que dormir! Pego cedo no batente.
Gabi responde: - Cala a boca aí, seu corno!
Otávio não tem forças para discutir. Tranca-se no banheiro. Vomita. Não consegue tocar a punheta que planejara.
***
Chegou atrasado no cartório. A mulher ficou dormindo. Não tomou sequer um cafezinho. O oficial titular deu bronca. Ele pediu desculpas. Há quase dez anos trabalhando no mesmo lugar e nenhuma promoção. Só batendo máquina. Nem conseguiu chegar a escrevente. Simples auxiliar. Tentou estudar, cursar direito. Não conseguiu sequer entrar naquela faculdade de fins de semana, que diziam ser fábrica de advogados. Paciência. O titular tinha que reconhecer seu trabalho. Criou coragem.
- “Seu” Andrade, eu estou precisando de um aumento! Sabe como é, eu gosto do trabalho, estou satisfeito. Só que agora a mulher vai ter nenê... A coisa tá ficando apertada...
- Impossível. Aliás, Otávio, hoje, com a informática, o seu trabalho é praticamente dispensável. Ainda não te despedi porque você já trabalha aqui faz tempo.
- É que eu tô duro! Sem nenhum centavo. E a mulher tá precisando de remédio.
- Se quiser um vale, posso adiantar. Desconto no décimo-terceiro. Melhor ainda: você não quer vender suas férias? Pode fazer a arrumação do arquivo morto. É mais um salário. Não está bom?
Não era aquilo que esperava. Tinha planejado tirar férias quando a criança nascesse. Poderia ajudar em casa. Muita coisa para consertar. Mas fazer o que? Precisava da grana. Topou a proposta e ainda agradeceu.
***
- Chegou cedo? Que houve?
- Vou sair logo. Jogar bola com a turma.
Não contou que havia recebido o dinheiro das férias. Tomou banho demorado, barbeou-se. A mulher estranhou:
- Conta essa prá outra. Tomar banho antes do futebol? Pensa que sou boba?
- É que eu tava cansado. Precisava refrescar.
- Você não vai sair!
Pôs-se frente à porta. Na mão, um espeto de churrasco.
- Vou! Você não vai me impedir.
- Então eu vou junto!
- De jeito nenhum! Lá só tem homem,
Empurrou violentamente a mulher. Sentiu a ponta do espeto ferindo seu braço direito. Ferimento leve... simples arranhão.
No bar, tomou duas branquinhas e uma cerveja. Suficientes para ganhar coragem. Ficou esperando. De repente chega a mulata. Está só. Cumprimenta. Ela responde com um sorriso no olhar, vai para os fundos e toma uma mesa. Há poucos fregueses. Ele pede mais uma cerveja. Pega dois copos e se aproxima:
- Posso?
Ela consente, apenas com os olhos.
- Aceita um copo?
- Hum... hum...
- Vi você ontem com a Selma.
- E você não tirou os olhos de mim.
- É que você é uma gata!
- Miau...
- Não faz assim... fico louco!
- Miau... miau... A Selma disse que você é casado.
- Estou me separando.
- Mentiroso... tô sabendo que a sua mulher está grávida.
- E eu com tesão. Você me deixa tarado...
- Que é isso! Vamos com calma.
- Vamos entrar nos finalmentes. Estou com uma graninha boa no bolso. Que tal irmos jantar e depois um motel?
- Você acha que eu sou dessas que saem na primeira noite? Tá enganado, moço. Fui com tua cara, mas tem que ser devagar. Talvez amanhã ou depois. Quem sabe?
***
Não vou ficar esperando. Aquele filho da puta me paga. Não sou mulher para ser traída. Armou-se com o espeto e saiu para a rua. Chegou no bar. Viu a Selma no meio de alguns homens. Todos alegres. Só ela de mulher. Aproximou-se.
- Onde está o meu marido? Sua puta!
- Veja como fala! Sei lá de seu marido!
- Eu sei que você tá dando em cima dele! Vaca!
- É a mãe!
Se não fosse a intervenção dos homens, Selma seria perfurada pelo espeto.
Voltou para casa em prantos, sem qualquer auxílio. Queria que o mundo acabasse. Queria morrer. Queria, principalmente, matar Otávio.
***
- Pode me chamar de Marina.
- Marina morena, Marina tesão...
Saíram no fusca da mulata. Pararam num beco escuro, perto da casa de Otávio.
- Vamos... o motel não é longe.
- Não... hoje não!
- Por que não?
- Hoje você se contenta com meus beijos. Não sou mulher de ir para a cama na primeira noite. Já falei. Amanhã. Eu prometo.
- Mas olha a minha situação! Não posso ficar desse jeito!
A mulata apertou a roliça barra de aço quente que estava sob as calças. Alisou. Abriu o zipper. Iniciou uma masturbação e parou.
- Amanhã. Te encontro no mesmo lugar.
A vontade era estuprar. Que merda. Saiu do carro. Os bagos pesando como chumbo.
***
- Onde você foi? Filho da puta!
- Calma, amor. Já te falei. Tava com a turma... jogando bola.
- Mentiroso! Cê tava no bar. Foi pra onde, depois?
- Já falei! Chega! Vai dormir.. não me enche o saco! Que porra!
Pendurada na parede, enfeitando, uma espingarda cartucheira. Gabi, descontrolada, a apanha. Otávio ri.
- Sua besta... isso aí não funciona. Está descarregada. Tá estragada. Nunca prestou. Deixa de ser goiaba. Vai dormir.
Gabi deixa a arma cair no chão. Vai para o quarto. Não quer pensar.
***
O dia demorou a passar. Só pensava no encontro à noite. Difícil concentrar no trabalho. O membro viril inchado, parecendo explodir.
Foi direto para a casa. Cumprimentou a mulher com um beijo, coisa que há muito não fazia.
- Amor! Vou jogar bola.
- Não vai não. Hoje você fica em casa.
- Não quero briga. Mas já combinei com a turma.
Gabi pega a cartucheira e aponta para Otávio.
- Já disse que não vai!
- E eu já disse que não tenho medo dessa bosta quebrada. Vou e fim de papo.
Tomou a espingarda das mãos de Gabi, fez cara de deboche e apontou para ela. Apertou o gatilho e... BAM!
Não entendeu nada. Viu a mulher ensangüentada caída no chão. Um rombo na barriga. Os jurados também não acreditaram na sua história. Vinte e oito anos de reclusão por duplo crime.
a.l.fontela