LÚCIFER
LÚCIFER
“Dar-te-ei tudo isto, se, prostrando-te diante de mim, me adorares” (Mat.4,9).
Reconheci de pronto. Estava bem diante de mim, sentado frente ao balcão. Era o próprio Lúcifer travestido de mulher. Mas, só muito tempo depois tive a certeza. Seus olhos violetas, insinuantes, fixaram-se nos meus. Sorrindo, ergueu a taça do drinque, forjando uma oferta. Devolvi o sorriso. Levantou-se e dirigiu-se para minha mesa.
- Boa tarde, professor! Posso fazer companhia?
- Será um prazer.
- Sou sua aluna na pós-graduação.
- Nunca a vi em classe.
- Curso à distância. Tenho boas notas.
E desenvolvemos um papo alegre. Drinque atrás de drinque, muito além do que estava habituado. Pedi licença para ir ao banheiro. Quando voltei, ela já não estava. Pedi a conta.
- A moça pagou tudo, professor.
***
Não consegui estudar naquela noite. Sequer ouvi o noticiário na TV. Aquela imagem teimava em permanecer diante de mim. Não era bela. O que atraíam eram aqueles olhos de Elizabeth Taylor e o brilho de seu rosto. No mais, seria uma mulher comum, de trinta anos, talvez. Estatura média, cabelos louros e curtos. Vestida sobriamente
com um conjunto de executiva. Demorei para pegar no sono. O tilintar do telefone me desperta. Acordo assustado. Quem será?
- Te acordei?
- Quem é?
- Eu! A Lu!
- Lu?
- Tomamos aperitivo juntos nesta tarde.
Que falha! Eu não havia perguntado o seu nome.
- Podemos repetir a dose amanhã?
- Por que não?
- Encontro o senhor no mesmo lugar.
- Tudo bem.
Olhei no relógio. Três e vinte da madrugada. Achei graça. Voltei a dormir e sonhei. Sonhei com Lu. Ela de camisola branca transparente vem em minha direção. Sinto o seu abraço. Seus lábios procuram os meus. São doces e perfumados. De repente, quem me beija é um doberman de olhos amarelos e bafo pútreo. Seus dentes afiados cravam vagarosamente em meu pescoço e descem por todo o meu corpo, arranhando... babando... tento gritar... a voz não sai. O doberman me acaricia com sua língua nojenta...e volta a ser Lu, segurando uma taça de champanha, rindo às gargalhadas.
Acordo ensopado.
***
Ela, pela primeira vez, estava na aula vespertina. Cumprimentou-me discretamente. Uma aluna como as outras, porém com ar mais compenetrado. Respondeu a todas as questões com acerto e de forma inteligentíssima.
À saída, estava me esperando.
- Está de pé o happy hour?
- Claro. Vamos para o Mariu’s.
- Não. Vamos para outro lugar. Bem mais longe.
- Aonde?
- Surpresa.
- É que estou a pé. Moro aqui perto.
- Sei. Vamos no meu carro.
Não sou chegado em carrões. Sempre optei pelos populares. Não entendo de marcas e potências. Mas o automóvel dela me seduziu, não só pelo tamanho e conforto, mas, principalmente, pelos componentes eletrônicos. Quase um avião.
Rodamos mais de uma hora. Aportamos em um lugar tranqüilo, escondido em um bosque. Aparência elegante. Poucos freqüentadores, todos de posse, pelo que deduzi por seus carros e vestimentas. Ficamos em uma mesinha na varanda coberta de flores, frente a um lago onde cisnes expunham suas belezas. Somente nós ali.
- Pois não, senhores?
O garçom ofereceu o cardápio.
Lu pediu vinho branco. Marca para mim desconhecida. Francês. Fiquei no meu uísque nacionalizado, com bastante gelo. Camarões de tira-gosto.
Puxei conversa sobre nossas atividades. Elogiei sua inteligência. Tentei ser engraçado. Ela simplesmente sorrindo. Irradiava brilho. Nada falava.
Confesso que estava gostando e muito. Mas também confesso que, apesar do cenário e da companhia, minha libido não havia sido despertada, até que ela se aproxima e...
- Quero te beijar.
Fui tomado de surpresa. Os beijos se sucederam. Muitos. E foi aí que vi - juro que não foi ilusão – o violeta de seus olhos se tornarem amarelos, como os do doberman do sonho.
Pedi a conta. Altíssima. Tive de me socorrer do cartão de crédito. Meu modesto orçamento deste mês teria que ser revisto.
Convidei-a para entrar em meu apartamento. Ela se negou. Insisti. De nada adiantou. Saiu rindo, arrancando como se fosse piloto de Fórmula Um.
De madrugada, novamente seu telefonema. Terminou dizendo: - te amo!
***
Desde que fiquei viúvo e os filhos seguiram seus caminhos, isto há mais de dez anos, levei vida metódica e de hábitos simples. Acordo por volta das nove horas e minha única ginástica consiste em ir e voltar a pé à padaria, que fica a uns trezentos metros de meu apartamento. Por desjejum um suco de laranja, pão com manteiga ou queijo derretido e um café preto. Tenho as manhãs livres e as passo em volta dos meus livros, sempre ouvindo clássicos da MPB. São minhas paixões. Almoço em um restaurante popular de forma espartana. Sou obrigado a controlar o peso. Ao fim da tarde, meu relax obrigatório: dois uísques nacionais com bastante gelo. Depois um pequeno lanche, noticiário e só. Apenas quando os filhos vêm me visitar, o que ocorre cada vez mais raramente, saio dessa rotina. E vivo, ou vivia, feliz.
Nunca mais quis me envolver em um relacionamento amoroso. Apenas aventuras esparsas, sem qualquer compromisso.
***
Logo que saio para o café, encontro Lu à porta do prédio.
- Estou te esperando. Vamos tomar o café juntos?
Levei-a à padaria. Para minha surpresa, ela adorou.
À tarde, fomos para o Mariu’s. Ali, reduto de alunos e professores, sem qualquer cerimônia, ela me beijou e, novamente, vi o violeta se tornar amarelo.
De madrugada, outro telefonema. Virou uma constante.
Nos dias que se seguiram, passou a me acompanhar em toda minha rotina.
A iniciativa foi dela, após duas semanas: - hoje quero dormir com você.
Chegou com um pacote.
- Presente!
- Para mim?
- Prá quem mais? Te amo.
Não vou descrever. Não era apenas um presente, mas vários, todos caríssimos. Pensei em recusar, mas como? ela estava tão alegre!
Depois do fondue e dois tintos italianos, a noite de amor. Acordei com uma sombra amarrando minhas pernas. Consegui, com muito esforço, levantar-me. Lu já havia saído. Deve ter sido sonho.
***
- Que é que você tem? Um coroa cinqüentão conseguir uma mulher daquelas! Rica, moça e bonita. Conta o segredo?
- Sei lá! Vai ver que ela tem complexo de Electra. Me adora. Me dominou por completo. Não tenho uma hora livre. Nem estou lendo mais. Sobrou tempo, estamos juntos. E tem mais, é ótima cozinheira. Tá sempre criando pratos divinos.
Estava desenvolvendo esse papo com o Tomi, amigo de infância, na sala dos professores, quando chegou dona Telma, a secretária. Ela entrou na conversa.
- Cuidado! Ela está te explorando. Assim que tiver o que deseja, vai te abandonar.
- Deixa de mau agouro. Que é que eu tenho que ela pode desejar?
Evidente que a conversa era de amigos, sem nenhuma seriedade. Apenas troça.
- Não sei o que ela quer, mas ela vai tirar. Eu a conheço. É um demônio.
- Conhece? De onde?
- Trabalhei na empresa do pai dela. Há muitos anos. Fui secretária executiva dele. Teve morte horrível. Envenenado. Ela ainda era criança, devia ter quatorze ou quinze anos. Fez um bolo com arsênico. As investigações concluíram que foi acidente. Nunca acreditei. A mãe agora é quem dirige todas as empresas. Tem mão de ferro. É pouco mais velha que você e ainda está bonita.
Voltei no tempo. Os jornais noticiaram o fato. Foi mesmo acidente. A Telma deve estar com ciúme. Logo após minha viuvez ela havia se insinuado e me fiz de desentendido.
***
Foi ela quem abordou o assunto:
- Eu adorava o meu pai. Foi acidente.
Fingi que nada sabia.
Ela contou a história. Havia se enganado. O pai havia guardado arsênico para uma experiência. Ela pensou que era açúcar. Foi preciso muita terapia para sair da depressão que a abatera.
- Acima de tudo, hoje está a minha mãe. É a pessoa que mais amo no mundo. Daria minha vida por ela.
Pobre menina! Pensei. Ela, chorando.
Logo desviou de assunto e passou a rir. Não uma risada histérica, daquelas que sucedem ao choro, mas um riso de felicidade.
***
E ela passou a ser parte de minha vida. Mas uma vida muito cara, que eu não podia suportar. Luxo e ostentação. Grifes e modas. Hotéis cinco estrelas. Festas e mais festas.
Expus as minhas dificuldades. Seria melhor que terminássemos. Ela se recusou taxativamente e me propôs:
- Quero que você seja assessor da administração das empresas. É minha função contratar o pessoal. Você é bem inteligente e será muito útil.
Sempre fui professor. Não entendo nada de comércio, indústria e qualquer tipo de negócio. Mas ela insistiu.
- Estamos em férias. Não precisa sair da universidade. Tenta pelo menos. Já tenho um trabalho para você. Na Espanha. Depois de amanhã você deve estar lá.
Como recusar?
Fui. Ela ficou. A missão foi bem fácil. Na prática, posso dizer que apenas servi de intérprete.
Quando voltei, não reconheci o meu apartamento. Estava todo decorado, com muito bom gosto. Mobiliário de alto valor. Ela sorrindo, com um cigarro em uma das mãos e uma taça de vinho na outra.
- Surpresa ! ! !
- O que você fez aqui?
Ela, sem soltar da taça, beijou-me e me conduziu por todos os cômodos. Todos modificados.
- Gostou?
- Sim. Mas...
- Nada de mas.
- É que, pelo menos, você deveria ter me avisado.
- Ora, eu passo o maior tempo aqui. Gosto de ficar em lugar agradável.
- Mas é o meu espaço. É claro que gostei. Mas não tenho como pagar.
- É presente. Faz parte do seu salário. Você desempenhou muito bem a sua função.
***
E a minha vida se transformou. Tornei-me um consultor executivo. Pouco trabalho e muito dinheiro. Tudo do melhor, desde os sapatos até o creme para o cabelo. Pedi demissão da universidade. O mundo estava aos meus pés. Mas...sempre tem um mas, tornei-me um dependente. Já não tinha mais vontades. Estas eram as vontades de Lu. Abandonei até mesmo a leitura de meus preferidos. Sentia falta das aulas, do café na padaria, da comidinha caseira, da turma do Mariu’s e, principalmente, da minha solidão. Agora estava sempre nas colunas sociais. Sempre rodeado de fúteis desconhecidos. É claro que jamais pensei em retroceder. O homem sempre quer mais. Eu não era exceção.
Disse que tinha pouco trabalho. Acho, na verdade, que não tinha nenhum. Era mais um acompanhante que se embriagava noite após noites nas badaladas festas. Amigos? Nenhum. Todos interesseiros. Muitos se aproximavam de mim pedindo que interferisse em suas pretensões. Eu repassava esses pedidos à Lu. Nunca me deu uma resposta. Eu não tinha porque insistir. Não era a minha função. Hoje, rememorando, eu era apenas um objeto. Uma companhia com ares de intelectual, que servia para propósitos comerciais. Mas muito bem pago. Ou seja, eu era um gigolô de luxo. E, nessa função, tornei-me alcoólatra. Especialista em vinhos e destilados. Provavelmente também um palhaço.
***
Sempre detestei música eletrônica. Mas não tinha como fugir das obrigações. Naquela noite ela estava linda. Vestido colante vermelho de lantejoulas e um perfume embriagante. Puxou-me para o centro da pista de dança. O som ensurdecedor. As luzes coloridas variando... tudo girando... girando... girando... beijou-me na boca, apaixonadamente. Seu corpo colado ao meu. Soltou-me e deu passos para trás. A luz bateu em seu rosto e vi. Vi os dentes caninos e os olhos amarelos e um sorriso que me arrepiou.
Foi a última noite que a vi.
***
Dia após dia, semana após semana, mês após mês, mil telefonemas não atendidos. Eu barrado na porta da empresa. Enxotado por seguranças. Percorria todos os bares e restaurantes que freqüentávamos. Tudo em vão. Afogava-me nos destilados. Envolvi-me em vários acidentes de trânsito. Meu carro cada vez mais despedaçado, assim
como eu. Preso por dirigir embriagado. Vomitei na delegacia e desmaiei. Acordei em um hospital público, todo dolorido e cheio de hematomas. E fui me afundando cada vez mais na bebida e na busca por Lu. Pensei em suicídio. Seria a última solução, que eu só levaria à cabo depois que a visse por mais uma vez. Também pensei em matá-la.
Sem renda, vendi os móveis para sustentar a bebida. Até que um dia acordei melhor. Não sei o que aconteceu. Tentaria voltar às aulas. À vida acadêmica. Pensei: - vou procurar o Tomi. Ele me ajudará. Tomei um belo e demorado banho, me barbeei, usei colônia. Olhei-me no espelho: - ainda tenho chance.
***
Não me arrependo. Eu tinha que fazer o que fiz.
***
Fui a pé para a casa de Tomi. Sabia que ele me receberia com alegria. Iria comigo à Universidade. Logo estaria de volta às aulas, à padaria para o café da manhã, à comidinha caseira, ao Mariu’s com os estudantes e aos meus livros. Seria tudo como antes.
***
Se tivesse sido atropelado por um caminhão, a dor não seria tão forte. Foi bem em frente à sua casa que vi. Ele não me viu. Estava de costas. Vi Lu, abraçada com ele, beijando-o na boca, os corpos colados. Vi seus olhos amarelos e os caninos salientes. Vi seus olhos voltarem ao violeta e seu sorriso de alegria.
Girei nos calcanhares.
No apartamento, bem guardado no cofre, havia conservado meu revólver e algumas balas.
A.L.FONTELA.