SÓ NÓS DOIS

SÓ NÓS DOIS

Quem a conheceu, mas não era da família, tinha a certeza que Ceci era um anjo. Não era freqüentadora assídua de igrejas, mas dizia-se bastante religiosa. A vizinhança acreditava. Foi moça bonita e recatada. Alta, cintura fina, peitos empinados, volumosos cabelos negros e brilhantes olhos de lodo. Na juventude e, depois, no início do casamento, não faltaram propostas de ricaços em “dar uma ajuda”. Ela repelia a todas com dignidade. Era mulher honesta, respeitada pela sociedade, a despeito de sua pobreza. Contava ser descendente de família tradicional e abastada, o que nunca se apurou, e que o pai, muito sem vergonha, mulherengo e cachaceiro, além de jogador, deixara a família na miséria. Os irmãos sumiram no mundo. A mãe morreu e ela colocou o pai no asilo. Casou com um sapateiro italiano e tiveram três filhos. Estes, logo que atingiram a maturidade, foram para a capital e nunca mais deram notícias.

Agora, aos setenta anos, vivia só com o marido.

***

Quem contou a história foi o irmão, em meu consultório.

- Doutor, ninguém sabe quem é aquela mulher. Juro que nunca mais quero vê-la. Tem um demônio dentro dela. Vim aqui só prá acertar uns papéis e essa gripe me pegou. Nem quero ficar nesta cidade. Anjo é o sapateiro. Vive debaixo de vara curta. Sempre foi um sofredor. Faz tudo que ela quer.

- O que ela fez de tão ruim? Pelo que sei, é gente boa.

- O senhor não sabe da missa a metade. Sabe que ela me acusou de pedofilia? Imagina! Disse que eu estava abusando do sobrinho. Tá certo que não sou uma pessoa normal. Nunca escondi isso. Mas jamais faria uma coisa dessas.

- Bem, talvez ela tivesse alguma razão. Hoje vocês homossexuais conseguiram muitas conquistas. Já não há tanto preconceito como antigamente, mas, naquele tempo...

- Doutor, até isso eu poderia entender, mas sabe o que ela fez com o outro irmão?

- Não?

- Foi em 68. No pior momento da ditadura. Denunciou o pobre. Ele era comunista, ligado a um movimento revolucionário. Veio para cá escondido. Estava na clandestinidade. Caiu na besteira de ir para a casa dela. Queria passar uns tempos por aqui, para depois fugir para o Chile. Não ficou um dia. Ela entregou o coitado para o capitão. Apareceu morto na cela. Disseram que suicidou.

- Tem certeza que foi ela?

- Quem mais poderia? Ninguém sabia que ele estava por aqui.

- Talvez... havia muita gente trabalhando para o SNI. Eu mesmo tive um colega de classe que era agente disfarçado.

***

Dona Ceci há algum tempo era minha cliente. Antes havia sido de meu falecido pai e de quase todos os médicos da cidade. Tinha mania de doenças. Mas agora eu estava atendendo ao marido, um senhor já se aproximando dos oitenta, muito tímido, pelo que notei por seu sorriso sem graça.

- Estou sentindo dor no braço esquerdo. Tô com medo de enfarte.

Fiz exame prolongado e não constatei nada de grave. Solicitei exames laboratoriais.

Três dias depois, voltava ao consultório.

- Nenhuma irregularidade, “seu” Pino. Ainda vai me enterrar!

- Certeza, doutor? E esta dor no braço?

- É só um nervo encavalado. Nada a se preocupar.

- Me preocupo muito, doutor. Se eu morrer, quem vai cuidar da Ceci? Ela é tão doente! Tão dependente! É só eu e ela, doutor.

***

Uma semana depois, estava de volta ao consultório. Desta vez acompanhado da mulher.

- O Pino está muito ruim, doutor. Ele sempre foi muito mole. É uma lerdeza que só vendo. Não tem iniciativa para nada. Se não é eu, ele nem come. Agora está bem pior.

Examinei-o novamente e constatei que sua pressão arterial estava bem acima do normal. Determinei o seu internamento.

***

A recuperação foi rápida. Receitei medicamentos e prescrevi regime: - nada de sal!

Dona Ceci reclamou: - Comida sem sal não tem gosto!

- Se ele quiser viver...

***

Algum tempo depois quem estava na CTI em estado gravíssimo era a dona Ceci. Nenhuma doença, mas uma fatalidade. Atropelada por um motoqueiro, bateu a cabeça na sarjeta. Estava em coma. Os dias passaram e o “seu” Pino sempre à porta, sempre perguntando da mulher. Quando possível, deixava-o entrar. Ele, segurando a sua mão, chorava. Entrou em desespero. Virou-se para mim, suplicando:

- Doutor, salva a Ceci. Está me fazendo muita falta. A vida inteira ela me martirizou. Queixava de tudo. Xingava o tempo todo. Não queria tirar o sal da comida. Nunca pude ter amigos. Até mesmo com minha família ela implicava. Deixei de freqüentar meus irmãos. Nossos filhos nunca a suportaram. A única diversão que eu tinha era ir ao campo aos domingos. Gosto muito de futebol. Tive que parar de ir. Ela exigiu. Para ela, todo mundo era ruim, até eu, que vivi só para ela. Doutor, faça o impossível, eu suplico, salva a minha mulher. Eu amo este demônio. Se ela morrer, quem vai brigar comigo?

A.L.FONTELA.

antonio luiz fontela
Enviado por antonio luiz fontela em 25/05/2017
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