A queda e a tempestade

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Eu estava novamente subindo escadas. Mas dessa vez os meus passos eram lentos e hesitantes. Os últimos anos da minha vida passavam como um filme diante dos meus olhos a cada degrau que eu galgava, as vezes eu parava para limpar as lágrimas que escorriam e manchavam meus óculos, mas logo retomava o passo. Finalmente eu estava no décimo sexto andar.

Apesar de haverem elevadores no prédio em que eu morava agora, algo me fez decidir pelas escadas. Arrependido pelo esforço, eu dei de cara com a porta de madeira do meu apartamento e já podia ouvir o miado das gatas, angustiadas pelo confinamento que eu as havia imposto. Me senti triste por isso, mas eu não podia continuar minha vida na casa antiga. Algo me dizia que não seria uma mudança de imóvel que ia resolver meus problemas. Mas era um passo necessário.

Abri a porta e a tranquei rapidamente para que as gatas não fugissem.

Observei a sala com os móveis ainda espalhados e desorganizados pela mudança. Caminhei pela casa e fui até a varanda.

Lá embaixo, eu via boa parte da cidade. Via pequenos carros e pessoas se locomovendo. Aquilo tudo me acalmou, mas também me deu a certeza de que as coisas não poderiam continuar daquele jeito.

Voltei para sala e botei ração para as gatas. Abri uma cerveja e me sentei na cama. Me despi sem pressa e fui bebendo o conteúdo da lata. O mesmo filme que passara na minha cabeça na escadaria retornou e com ele as lágrimas. Achei que eu tinha encontrado meu limite.

Me levantei e fui até o chuveiro. Tomei um banho quente e me enxuguei displicentemente. Fiquei diante do espelho. Novamente, não reconheci meu rosto. Apenas os olhos manchados de vermelho.

Vesti uma bermuda surrada e me sentei na grade da varanda. Com as pernas para o lado de fora.

senti uma agonia no estômago. Eu sempre tive medo de altura.

Eu suava frio e meus pés estavam gelados.

Fui esvaziando a cerveja e olhando para baixo.

Seria tão fácil fechar os olhos escorregar. Seria tão simples, rápido e indolor. Cessariam todas as dúvidas, morreriam as perguntas sem respostas e calariam todas as vozes que não me deixavam ter paz.

Parecia uma decisão sensata. Mas por que eu hesitava?

Fechei meus olhos e tudo ficou escuro.

Achei que a queda seria mais rápida e assustadora. Estranhamente me senti acolhido, como naqueles sonhos em que se pode voar. Parecia que estava mergulhando numa piscina quente.

Então, subitamente, veio um clarão e eu pude ouvir um estampido seguido de um zunido fino e oscilante.

Senti que eu me dissolvia e em algo quente e aconchegante. Finalmente eu estava em paz, cercado de silêncio e nada.

Não sei quanto tempo isso durou... tempo parecia uma coisa abstrata.

Mas fui arrancado daquele estado pacífico por uma voz conhecida...

Abri meus olhos.

Acordei ofegante. Eu estava numa barraca de camping. Do lado de fora dava pra ouvir que caia uma tempestade. A barraca tremia e chiava com o barulho das gotas de chuva.

Abri o zíper e dei de cara com Clara, ensopada e tremendo.

- Posso entrar? Minha barraca tá com goteira.

- Entra ai, mulher. Se enxuga.

Clara entrou, e eu fui voltando aos poucos ao normal.

Tinha sido tudo um sonho. Dos mais loucos e profundos que eu já tinha tido.

Parecia real. Apesar de eu nunca ter morado num apartamento no décimo sexto andar. Apesar de nunca ter me mudado para um lugar assim... os sentimentos eram reais. A angústia era a mesma. Eu só estava fingindo que não sentia para parecer uma pessoa normal.

Clara se aconchegou do meu lado e eu abri espaço entre a bagunça para que pudéssemos deitar.

- Você está bem? – Ela disse.

- Estou... Só tive um sonho muito estranho.

- Que tipo de sonho?

- Não quero falar sobre ele agora.

- Você tá tremendo.

- Você também... haha parece um pinto que saiu da chuva.

- Eu não sabia que ia cair essa chuva né?

- Só tu mesmo pra me convencer a acampar e ainda me traz pra uma tempestade.

- Você falou que eu era uma cachoeira. Eu quis te apresentar minha cachoeira preferida. O meu lugar favorito do mundo.

- Não to reclamando de ter vindo. Achei tudo maravilhoso.

- Certeza?

- Sim. E vou te provar.

- Como?

Clara parecia intrigada com minha afirmação e eu podia sentir, apesar da escuridão completa.

Engatinhei e abri a barraca e só assim pude ver um pouco a surpresa de Clara.

- Vem comigo. Eu disse.

- Mas tá chovendo muito.

- Venha menina.

Com isso, puxei Clara pela mão e corri com ela debaixo da chuva.

A cachoeira estava perto, dava pra ouvir.

Fomos andando pela grama e logo depois pelas pedras e chegamos finalmente no riacho onde a cachoeira quebrava.

Puxei Clara pela mão e entramos debaixo d´agua.

Ela tremia, mas sorria.

O frio à fazia soluçar e se encolher. Mas mesmo assim o sorriso não deixava seu rosto.

- Você ficou doido?

- Um pouco.

- Tô vendo na sua cara.

- Como, se tá tudo escuro?

- Dá pra perceber...

- Eu precisava me sentir um pouco mais vivo.

Afundei na água e me afastei um pouco de Clara.

Ela veio andando devagar em minha direção.

- Vamos voltar pra a barraca e beber alguma coisa. – Balbuciou enquanto tremia.

- Vamos.

Voltamos da forma mais rápida que conseguimos. Nos enxugamos e abrimos uma garrafa de vinho.

A noite foi passando e começou a trovoar.

Raios cortavam o céu e Clara abriu um pouco a barraca para observar.

Dava pra ver que ela estava encantada e ao mesmo tempo um pouco assustada. Me postei ao seu lado para assistir e senti a mão de Clara segurando com força na minha. Não sei se foi o álcool ou o frio, mas eu a sentia cada vez mais próxima.

Depois de um trovão particularmente intenso, Clara resolveu parar de olhar para o céu e se apertou contra mim.

Deitamos e nos enrolamos nos lençóis.

Não sei quanto tempo levou para que adormecêssemos e só lembro de acordar, olhar para o lado e ver Clara encolhida dormindo.

Saí silenciosamente da barraca e vi que estava amanhecendo. Não chovia mais e resolvi observar o estrago na barraca dela.

Abri o zíper e para meu estranhamento, estava tudo seco lá dentro.

Não havia um furo sequer.

Voltei para minha barraca e me aninhei debaixo dos lençóis ao lado de Clara.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 22/05/2017
Reeditado em 05/06/2017
Código do texto: T6006351
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