Clara
4
Cheguei um pouco atrasado, como de hábito.
Clara estava sentada na beirada do porto, olhando o encontro do mar com o rio.
Balançava as pernas, como se fosse uma criança, e eu podia perceber que ela estava um pouco incomodada com o frio que o vento do fim de tarde trazia do mar. Fiquei olhando para ela por alguns segundos antes de me aproximar.
Sentei-me do seu lado sem dizer nada. Ela me olhou, sorriu e voltou a contemplar o por do sol. Ficamos ali, sem trocar nenhuma palavra enquanto o sol mergulhava entre os prédios que cobriam a linha do horizonte às nossas costas, e pintava o céu inteiro em tons de laranja e rosa.
- Não teve um bom dia? Eu disse finalmente.
- Não exatamente.
- Imaginei. O meu também não foi dos melhores.
- Quando me sinto desse jeito eu gosto de procurar o mar. Parece que ele simplifica tudo.
- É assim que as coisas são, Clara, nossos problemas muitas vezes são simples... A gente é que complica, mas no fim tudo se acerta.
- Desde quando você se tornou um otimista?
- Desde que você me ensinou, amarela.
Clara riu e passou o braço por trás do meu pescoço.
- Quer tomar uma cerveja?
- Só se for mais de uma. Falei, sorrindo.
Nos levantamos e andamos lado a lado até um bar na rua do Bom Jesus. Sentamos e pedimos uma cerveja.
Fiquei olhando pra minha amiga enquanto ela enchia os copos. Apesar da melancolia que eu sabia que existia dentro dela, eu não podia negar que a serenidade dela me acalmava e me ajudava a lidar com minhas próprias inquietudes. Estar com Clara de alguma forma me mostrava que eu não estava sozinho ante todas as situações que me angustiavam. Era como naquela musica do Pink Floyd. “Two lost souls swimming in a fish bowl, year after year”.
Conversar com ela, era conversar com alguém que sabia exatamente o que eu estava sentindo, e no fundo, acho que eu também sabia o que se passava com ela.
Eu ainda me admirava das circunstancias que nos aproximaram e nas histórias que nos levaram a caminhar juntos pelas ruas do Recife antigo naquela noite. Eu não era o tipo de cara que acreditava em destino, pelo menos não naquele ponto. O que eu acreditava era em sorte. E eu me sentia afortunado por poder contar com ela.
Imerso nesses pensamentos, percebi que Clara me encarava, com um sorriso sem graça no rosto. Não sei quanto tempo passei na minha viagem, mas acho que não foram meros segundos.
- Onde você tava agora? – ela riu – Tava perdido?
- Foi mal, as vezes acontece. Coisa de geminiano.
- Ah... Achei engraçado, você ficou tão sério.
- Tava pensando em como as coisas acontecem e que a gente termina tendo pouco controle sobre o que vai acontecer amanhã.
- Como assim?
- Bem. Eu não imaginava que estaria aqui, bebendo cerveja com você. Ou que conversaríamos sobre nossos problemas. Que você me entenderia. Que eu te entenderia.
- É verdade. É bom poder conversar contigo.
- Só que eu acho que você não se abre tanto quanto eu sobre o que sente. Eu falo pelos cotovelos, pro bem ou pro mal. E te vejo muito reservada.
- É difícil falar sobre certas coisas.
- Eu entendo. Não é uma crítica.
- Eu sei que não é.
- Não sei se é exatamente isso o que você sente. Mas vou tentar falar sobre o que eu percebo.
- Ok.
- Tu tenta fazer o melhor que pode pelas pessoas que você gosta. Todo mundo espera reciprocidade nas relações, é algo natural. A falta dela sempre causa sofrimento. Contigo eu acho que é mais simples. Você só espera que as pessoas tentem. Que mostrem o esforço. O esforço parece mais importante que o resultado, pra você.
Clara ficou encarando a cerveja enquanto eu falava, e não falou nada, então eu continuei.
- Diferentemente de mim, teu amor não vem fácil. Eu me apaixono rotineiramente e de forma rápida. Você demora a amar alguém, as coisas fluem lentamente, mas vão se carregando de intensidade. Como um rio que começa correndo devagar, mas que vai acelerando e termina numa cachoeira. Você só espera encontrar alguém que queira nadar em você, tanto nos dias de calma quanto nos dias de correnteza.
- De onde você tirou isso tudo?
- Não sei. De você.
- Continua.
- Eu sou um Zé Ruela. Confio em todo mundo. Basta eu gostar de alguém que eu já espero o melhor dela. Acredito no que os outros dizem até eles me provarem que não merecem minha confiança. Por isso fui feito de otário por você sabe quem.
Clara não conseguiu conter o riso com minha brincadeira e gesticulou para que eu continuasse.
- Já você, parece que demora a confiar afetivamente. É uma questão até de entrega, se você sente a reciprocidade, você se joga. Tudo em tu denota intensidade. Eu gosto de analogias e você parece a própria cachoeira.
Clara ficou pesando as minhas palavras, tomou um gole da cerveja e me olhou com um sorriso de aprovação.
- Tá tudo certo. Não achei que eu era tão transparente.
- Não sei se você é transparente, ou se é simplesmente familiar pra mim.
- Estranho que você me diga isso tudo agora.
- Porque estranho?
- Por que eu não estou acostumada em ser compreendida. As pessoas parecem alheias umas as outras. São poucas as que estão realmente observando ou realmente preocupadas.
- Desde quando você se tornou assim tão fatalista, Clara?
Clara riu, por eu ter roubado sua frase, e disse me dando um tapinha no braço.
- A vida né? Uma sucessão de histórias semelhantes se repetindo, as coisas vem e vão, e de um jeito ou de outro, as elas se repetem e vão moldando a gente.
- Eu não queria concordar com isso, mas acho que você tem razão.
Terminamos a cerveja em silêncio e Clara falou subitamente.
- Eu quero dançar.
- Sou uma negação dançando, digo logo.
- hahaha Não é possível.
- É verdade. Mas se você quiser eu te acompanho, só não ria da minha cara.
- Não vou rir. Só quero me mexer um pouco.
- Tá certo.
Paguei a conta e fui no banheiro. Quando voltei, Clara estava em pé, fuçando no celular.
- Vou desligar essa bosta, só avisei a minha mãe que estava com você.
- Acho que vou fazer o mesmo, Clara. As vezes eu fico ansioso, olhando o telefone o tempo todo e termino me esquecendo de aproveitar o que tenho ao meu redor.
- Então tá certo. Sem celular até a hora de ir embora.
Apertamos as mãos e saímos, de braços dados, procurando por algum agito.
Eu sempre me senti à vontade no Recife Antigo. As ruas de paralelepípedos, os prédios caindo aos pedaços, as calçadas e as luzes amareladas que as iluminavam. Eu amava sobretudo o cheiro de maresia e a proximidade do mar. Clara, pelo jeito também amava estar ali. Seu olhar se perdia constantemente nos prédios, como tentasse reconstruir a história de cada casa e cada sobrado.
Eu não estava me sentindo muito falante aquela noite, diferentemente do que é comum para mim. Acho que meu silêncio deixou Clara intrigada. Eu via que ela estava com alguma pergunta na ponta da língua, mas hesitava de fazê-la.
Em algum ponto do caminho ela finalmente falou.
- Você tem estado com alguém ultimamente.
Fui pego de surpresa pela pergunta, mas respondi prontamente.
- Tenho sim.
- E?
- Como assim?
- Eu quero saber... como tem sido pra você?
- Estranho. Confuso.
- Fala mais.
- Depois do meu último relacionamento eu não sei se consigo confiar em alguem com quem esteja envolvido.
- Eu sei que é difícil, mas você não pode deixar que as decepções que uma pessoa lhe causou afetarem os seus próximos relacionamentos.
- Clara. Eu vivi dois anos de uma mentira. É complicado demais. Eu descobri traições, mentiras, omissões, manipulações de todo o tipo. Considero que minha ex tinha algo de uma sociopata.
- Pode ser. Pode não ser. Mas o que ela fez cabe a consciência dela. Você sabe que deu o que tinha de melhor. Se ela errou, o erro é dela, não seu. Não se puna por isso.
- Me culpo por confiar cegamente.
- Eu sei como é. Mas não fica nessa. Tu é melhor que isso.
Paramos de andar e Clara me abraçou.
Pude sentir sua respiração um pouco mais calma do que a minha e aos poucos fui também me acalmando.
- Olha Rômulo, eu te conheço há muito pouco tempo, mas já sei que não suporto te ver com esse humor. Tenho que fazer algo a respeito.
- Acho que ninguém gosta de me ver assim. Fico mais ranzinza do que o de costume. Por isso que esse meu novo rolo tá estranho. Qualquer pessoa que conviva comigo por mais de uma hora vai ver que eu estou carregando um peso enorme nas costas. Eu me sinto um burro de carga subindo a ladeira da misericórdia.
Clara riu e me deu um beijo no rosto.
- Tu faz os melhores comentários, cabra besta. Vamos dançar.
- Tu vai, eu só vou ficar olhando e me agarrando com uma cerveja.
Vamos então.
E ela dançou. A noite inteira, como se não houvesse amanhã... até que fosse de manhã.
Terminamos no mesmo lugar onde a noite começou.
Clara se tremendo de frio, abraçada comigo e esperando o sol surgir do meio do mar.
Pensei que o tempo poderia dar uma parada pra que aquelas sensações durassem mais um pouco. Fazia tempo que eu não dividia algo com uma companhia realmente sincera.
Mas o tempo passou, e logo estávamos nos nossos respectivos ônibus em direção às nossas casas.
Só ai, ligamos os celulares e voltamos às vidas e aos problemas que estávamos tentando deixar para trás, da melhor forma possível.