Letras da Arábia - A terra vai comer

O rastro da lua excita o coração de Chico. Seu olho se volta e, à entrada do jardim, a donzela, muito amada, a dos lábios rubros e pele de jambo. E se lembra dos mergulhos nos cílios de raios de sol. No tapete macio da lembrança se ajunta ainda um pé de cipreste, uma chuva temporona, poeira e vapor, a dama-da-noite, a montra de rosas... Naquele tempo, os anjos eram aos montes e muitos se agrupavam nas poucas nuvens de outubro, à tardinha, de banho tomado e trocavam estórias, as vozes roucas com gosto de suspiro de clara de ovo. No cinema ia uma canção, enquanto os casais aguardavam a sessão das oito.

Por entre a trama dos segundos, uma vez uma voz em melodia. E uma serenata, uma canção antiga, uma valsa, um xote, um tango, bolero ou balada italiana, qualquer doce agrupamento de notas – não importa de que geração – mas qualquer que lhe diga que o tempo está passando. Chico descobriu que as músicas servem de relógio e nelas ele vai descobrindo sua idade. E, na galeria dos espelhos, os rostos se sucedem. Aqueles, crianças; esses, adolescentes; estes, os homens sérios, de coração amargo e riscos nos cantos da boca. Afasta os últimos, escolhe os primeiros, são mais amenos, não têm ainda o fel entranhado no miocárdio.

- Mãe, vou com eles à pescaria, posso ir?

- Claro que pode, mas cuidado, que os anjos não sabem nadar.

Você já pensou na vida das minhocas? Por que é que devem ser comidas pelos peixinhos? E os peixinhos? Por que é que a gente pode comê-los? E a gente? É verdade que a terra vai comer? Como tenho medo de formigas!

As pescarias não duravam até a noite, como foi costume anos depois. Mas sonhava a noite toda com o ir-se das águas, no descer macio ou na correnteza bruta insultando as pedras, o coração fremia só de pensar em cair, de ser puxado do caboclo d'água, como tinha medo de morrer afogado e incorar no fundo, na galhada suja, o lodo nojento, aguada a barriga e inchado o corpo, quem sabe beliscado de piabas... Prefiro piabas às formigas, se não há outro jeito.

Consta que afogado não tem sossego de cristão, segundo dito dos antigos. E que, toda noite muito escura, descem eles pelo rio em procissão de almas penadas, canoa atrás de canoa, cada qual com uma vela na mão direita, em procissão assim, macabramente, gemendo triste e sentido que nem escravo na hora da chibata.

(Jeddah, Arábia Saudita, 09/1975)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 18/05/2017
Reeditado em 11/09/2020
Código do texto: T6002438
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.