EM BUSCA DO PASSADO

EM BUSCA DO PASSADO

- Não sei se quero fazer isto, Carlos!

A ressonância na voz de Rodrigo soava com um certo medo. Carlos porém, continuava a dirigir como se nada tivesse ouvido, pois tantas outras vezes ouviu aquela mesma frase, naquelas mesmas proximidades, retornando em seguida.

No entanto, desta vez decidiu intervir e tentar, de alguma maneira, ajudar seu melhor amigo.

Conheceram-se ainda pequenos no colégio, mais precisamente no gabinete da diretora, provando que não eram alunos nada exemplares, embora tivessem eles, muitas qualidades.

A partir daí surgiu uma bela amizade entre os dois que foi, com o passar do tempo, solidificando-se.

- Sabe qual é o seu problema, Rodrigo? – atalhou Carlos. – Insegurança! Você é muito inseguro.

Rodrigo fingiu não ouvir e, mesmo hesitante, acabou por dizer:

- Vamos voltar, Carlos!

Rodrigo sentiu gelar o sangue em suas veias quando, com manobras e freiadas abruptas, Carlos tirou o carro para fora da estrada.

- Que droga, Carlos! O que você está tentando fazer? Está querendo nos matar, é?! – bravejou Rodrigo ao concluir que tudo aquilo era desnecessário.

Carlos saiu do carro furioso e distanciou-se um pouco, enquanto Rodrigo ficou, por um momento, tentando compreender tudo o que estava acontecendo, ainda atordoado. Finalmente saiu do carro e pôs-se a caminhar em direção ao amigo.

- Por que tudo isso agora? – perguntou, num outro tom, na esperança que Carlos lhe dissesse algo.

Após alguns instantes fitando os olhos do amigo, Carlos respondeu com outra pergunta:

- Afinal, Rodrigo, você quer ou não, resolver logo esta história?

Rodrigo suspirou enfadado, mas enfim anuindo com a cabeça.

Voltaram ao carro e retomaram a rodovia, pois não muito distante dali, numa cidade do norte do Paraná, alguém os esperava.

* * *

A porta do elevador abriu-se no “Térreo” e três pessoas desceram. Um homem calvo, de meia idade, um pouco obeso e de fisionomia pálida, discutia os problemas da firma na qual era um dos diretores com um outro, um pouco mais jovem, alto, de olhar ativo e de face austera. Atrás, indiferente à preocupação dos primeiros, um outro de cabelos grisalhos, semblante taciturno, não muito baixo, magro e com um olhar um tanto sombrio escondido por detrás das grossas lentes dos óculos.

Cumprimentou o porteiro do prédio e dirigiu-se à rua. Por alguns instantes, observou o movimento à sua volta. Pôs-se a caminhar com passos tranquilos em direção a uma lanchonete que ficava na próxima esquina.

* * *

A Saveiro grafite entrou na Avenida XV de Novembro por uma de suas ruas secundárias.

Tomaram o sentido do centro da cidade. Rodrigo sentiu pulsar mais forte o coração ao passarem em frente a um lanchonete que ficava uma esquina adiante à rua pela qual vieram. Aquela insegurança, que lhe envolvia como uma densa névoa as razões, lentamente apossava-se de todo o seu frágil e vulnerável corpo. Num gesto tímido e ensaiado, fitou o amigo.

Desviou, num relance, o olhar ao ser surpreendido por cálidas lágrimas que, rudes, afloraram-lhe aos tristes olhos.

Carlos estacionou em frente a um edifício centro comercial. Rodrigo estava cabisbaixo, pensativo. Carlos decidiu permanecer em silêncio até quando necessário. Ao fim de alguns minutos, ergueu a cabeça suspirando enfadado.

- E então, vamos? – perguntou Carlos com uma das mãos no ombro do amigo como querendo dizer: “tudo vai dar certo”.

Rodrigo retribuiu o afeto com um sorriso. Na verdade, um sorriso refalsado e medroso. Saíram os dois do carro e puseram-se em pé na calçada.

- É este mesmo, o endereço? – indagou a Rodrigo que novamente tirava do bolso da calça um pedaço de papel que sua mãe lhe dera dias atrás.

- É! – confirmou olhando com um certo medo o edifício à sua frente.

Perguntaram ao porteiro pelo senhor L.F.S., que trabalhava em uma das firmas daquele prédio.

O porteiro, um senhor baixinho, de bigode, cabelos brancos e com um ar de bonachão, respondeu-lhes que tinha saído há pouco.

- Demora? – para variar, foi Carlos quem fez a pergunta, pois Rodrigo parecia estar hipnotizado pela ânsia de enfim, após vinte e dois anos, conhecer seu algoz.

- Não sei dizer... Mas provavelmente deve estar na lanchonete. Virem à esquerda, é na esquina.

Carlos agradeceu pelas informações e saíram para a rua. O tempo fechava-se. Parecia querer chover. Nuvens negras iam, aos poucos, envolvendo toda a imensidão azul do céu.

Caminharam em silêncio por alguns instantes até que Rodrigo, num tom de profunda melancolia, começou falar:

- Nunca em minha vida pensei que estaria fazendo isto! - colocou as mãos no bolso da jaqueta jeans desbotada e continuou: - Eu vivia perguntando sobre o meu pai, à minha mãe, quando pequeno. Eu queria saber porque a nossa família não era igual as dos meus amigos do colégio. A família tradicional e feliz com pai, mãe e filhos... Ela nunca me dizia a verdade. Sempre desconversava, ou saía apressada dizendo que tinha muito o que fazer, ou que havia esquecido alguma coisa no fogo. Mas eu percebia que ela, quase sempre, levava as mãos ao rosto, aflita, e corria a se trancar no quarto. Ela chorava, eu sei que chorava! Só não entendia o porquê.

Pingos de chuva atingiram-lhe a face imolada confundindo-se com seu pranto. Carlos prendeu o lábio inferior com os dentes a fim de evitar que explodisse em soluços. Voltou o olhar para o outro lado da rua onde pessoas corriam com jornais sobre as cabeças, na inútil tentativa de protegerem-se daquela inesperada chuva de verão, embora sua atenção estivesse completamente voltada na triste e imerecida história da vida de Rodrigo.

- Sabe, eu criei o meu “pai imaginário” e sonhava com ele. Eu o tinha como um herói – continuou o jovem. – Eu era muito novo na época. Meus amigos me perguntavam: “Quem é o seu pai?”, “O que ele faz?”, “Como ele é?”... Eu dizia que era um cara super bacana, jogava futebol comigo e que adorávamos um ao outro. Os anos passaram, penosos para mim, e agora chega minha mãe desculpando-se, me entrega um pedaço de papel com um endereço qualquer e me diz: “Vai, vai conhecer o seu pai!”. É tudo tão complicado! Gostaria que fosse simples... – ergueu a cabeça, com os olhos fechados, abrindo, como numa dança, os braços e continuando: - Como esta chuva que cai!

Rodrigo sorriu como não o fazia há tempos. Parecia ter esquecido, ou querer esquecer, para sempre, as mágoas de seu passado, embora Carlos temesse algo surpreendente e inesperado que viesse do amigo.

Entraram na lanchonete. Carlos tirou o agasalho que usava sobre a camiseta cavada, que estava completamente molhado, estendendo-o no encosto de uma cadeira e em seguida sentando-se à uma das mesas próximas à porta enquanto Rodrigo permanecia ainda em pé, a tremer de frio e de medo.

Havia naquele recinto poucas pessoas: um casal de namorados em uma das mesas ao fundo, dois homens a conversarem sentados à uma das mesas que ficavam perto das janelas, dois outros a conversarem sentados ao balcão e um último, de cabelos grisalhos, usando óculos de grau, também ao balcão, a ler um jornal. Um daqueles homens era o, até então, desconhecido pai de Rodrigo.

Carlos volvia o olhar em torno, tentando descobrir qual daquelas pessoas tinha mais semelhança com seu amigo, embora tivesse Rodrigo herdado as feições de sua mãe.

- É melhor tirar esta jaqueta molhada se não quiser pegar um resfriado, garoto!

Rodrigo voltou o olhar à pessoa que lhe dirigiu a palavra. O homem de semblante taciturno limpava as lentes de seus óculos com um lenço.

- Sente-se aí! Eu lhe pago uma bebida – novamente o homem, colocando os óculos e guardando o lenço no bolso esquerdo da camisa.

Sentou-se enfim, Rodrigo, embora estivesse ainda um pouco atordoado por seus mais assombrosos pensamentos.

- Você é daqui da cidade mesmo, garoto? – tornou o homem, demonstrando um particular interesse no jovem.

- Não, não senhor.

- Está passeando?

- Não, exatamente. Na verdade estou procurando uma pessoa.

Uma moça ruiva, de cabelos curtos e belos olhos verdes trouxe uma dose de martine para o homem com quem Rodrigo conversava.

- E você, o que deseja? – perguntou a moça ao jovem.

Rodrigo hesitou em pedir bebida alcoólica, pois com certeza não era o seu forte.

- Um refrigerante – pediu ele, um pouco sem graça.

- Estou vendo que é um rapaz esperto. Não bebe... Faz bem!

O homem tirou um maço de cigarros do bolso da camisa e ofereceu a Rodrigo, como se estivesse submetendo-o a um teste.

- Aceita um cigarro? – perguntou num tom malicioso.

Achando engraçada aquela cena, Rodrigo acabou sorrindo. Não foi preciso que o jovem respondesse à pergunta para que o distinto senhor guardasse novamente o maço de cigarros e lhe dissesse, desta vez num tom afável:

- Estou brincando...

O refrigerante que Rodrigo pediu foi servido e, por questão de educação, ofereceu ao seu anfitrião:

- Não, não... Muito obrigado, mas não bebo refrigerantes, pois confesso que sou um tanto “fraco” para este tipo de bebidas.

Novamente risos, desta vez de ambos.

- É engraçado... – continuou o homem. – Mas parece que eu te conheço há tantos anos...

Carlos, que discretamente prestava atenção na conversa dos dois, sorriu demonstrando um certo contentamento quando o amigo respondeu ao seu anfitrião:

- É... Muito mais do que você imagina!

Por um momento Rodrigo pensou ter visto uma lágrima nos olhos do seu novo amigo, mas foi apenas impressão.

Fitaram-se por alguns instantes, o bastante para que os convencesse que estavam, ambos, frente a um espelho.

A chuva havia cessado e o sol voltava a brilhar sobre a Cidade Canção. Levantando-se da mesa onde estava, Carlos apanhou sua blusa e dirigiu-se à porta. Rodrigo, também levantando-se, afastou-se cerca de dois passos de distância e deu um último sorriso para seu algoz que estendia-lhe a mão.

- Acho melhor não! – disse Rodrigo, colocando para fora o que restara de seu ressentimento.

O algoz nada disse, apenas lhe sorriu.

- Bom... Até a vista! – despediu-se finalmente Rodrigo.

- Cuide-se, garoto! – desta vez o algoz, como quem dissesse a um filho

Carlos mantinha a porta aberta à espera do amigo e este, antes que por ela passasse, voltou-se em direção ao homem e pediu:

- Diga-me o seu nome...

O homem estranhou.

- Eu tenho certeza, mas preciso ouvir.

- L.F.S.. E o seu?

Rodrigo, permanecendo sério, lhe respondeu:

- Rodrigo S.. Mas se quiser, pode me chamar de “filho”, eu não me importo!

L.F.S., ainda sorrindo, concordou, orgulhoso, apenas balançando a cabeça.

Os dois jovens contracenaram um sorriso sincero e saíram, com a certeza de que ali, naquela lanchonete, ficaram para sempre sepultadas angústias de vinte e dois anos.

Nos olhos do algoz afloraram lágrimas, verdadeiras, qual madressilvas aflorando na primavera.

Ale Silva
Enviado por Ale Silva em 18/05/2017
Código do texto: T6002083
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