O ASSASSINO

O ASSASSINO

Pende a cabeça cansada ao ombro, triste, involuntariamente. A sala exibe sofás profundos, antigos. Cortinas escuras, pesadas.

O garboso lustre deixa resplandecer apenas o brilho opaco dos cristais apagados, esquecidos. Livros velhos, empoeirados simplesmente.

A noite é funesta e chuvosa; sinônimo de solidão. Na estante, um álbum outrora azul, que ainda traz consigo o indefinível, o abstrato perfume de lembranças, memorial, saudade.

O tapete vinho mostra, displicente, um círculo tinto, discreto, de vinho. Na vidraça embaçada; o reflexo, a face, os pingos da chuva resvalando, pranto.

Apenas os dois ali, vazios de palavras, na sala quieta, deserta de alma. Ele acende um cigarro e a contempla terno, saudoso, esquecido.

- Fale um pouco, Mariana. Você está tão calada! – ele, quebrando o silêncio noturno e umedecido, após longa tragada.

Ela, entretanto, nada diz. Mantém o olhar firme, num meio sorriso mais que sério.

O tempo é eterno, dura quase um piscar de olhos. Na parede gelo, apenas um antigo relógio colonial a denunciar infindável, incansavelmente, as horas mortas da noite.

- Por que não fala nada?! – ele insiste.

Depois, os olhos pardos de Mariana perdem-se dos dele e ficam a mirar o teto.

Ele ensaia um sorriso e divaga... Divaga.... Divaga...

O cigarro acaba, junto aos balbucios inúteis, tão desnecessários quanto os duvidosos sentimentos. Então ele cala, tendo novamente a amante aos seus olhos. Sua mão toca o rosto fino e branco da jovem num carinho rude. Ela, porém, de nada reclama. As mãos entrelaçadas ao queixo, nenhum movimento, o mesmo sorriso sério, os mesmos olhos pardos, estáticos, flertivos. Tudo, infinitamente, parado, congelado para sempre no tempo. No tão distante passado dos dias vividos. Nas taças, luzes, sons dormidos. Nas cores tão abstratas, como também no soluço e no ritornelo das valsas. Tudo, no sentido real da palavra, tão mágico e fugaz tendo preso na garganta o perigoso verbo amar conjugado no presente do indicativo.

Então, um silêncio fúnebre e o gosto amargo da palavra morte a flamejar nos lábios brancos, ressequidos. Apenas isso, mais nada.

O vento lá fora é um leve sopro, quase um hálito. As nuvens ainda desmancham-se em chuva.

Insensatez é o que lhe tem na mente ao pronunciar, num crescente de angústia, o ingênuo nome da primeira amada.

- Mariana... – sua voz é quase finda, um sussurro triste somente. – Eu te amo!

Seus lábios beijam o lívido semblante retratado.

Num acesso de cólera lança-a longe, levantando-se num sobressalto. Corre à gaveta da mesa de trabalho, a primeira. Dela tira um lápis preto e o aperta ao punho trêmulo e cerrado.

Seu olhar é medonho, flertando a pálida fotografia aos pés da mesa de centro.

Novamente ele a tem diante dos olhos nada circunspectos.

A imagem eternizada no tempo o contempla. Os mesmos olhos pardos e firmes, o mesmo sorriso silencioso, assim como as mãos entrelaçadas ao frágil queixo.

São violentos os golpes que vão deformando, com fúria, o fino e branco rosto da amante.

Cai ao chão grotesco, toda envolvida de uma inefável beleza morta.

Dois olhinhos estranhos o observam, mesmo julgando-se só. Repentinamente, a chuva cessa. Ele cai de joelhos e recosta-se ao sofá, a chorar um choro patético e convulsivo.

Triste e silente também chora num canto sombrio da sala uma bizarra, estranha mariposa, cúmplice ao crime e, ao mesmo, testemunha ocular.

Ale Silva
Enviado por Ale Silva em 17/05/2017
Código do texto: T6001132
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