Sobre dores e esperanças
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Acordei sem querer, da mesma forma que vinha acontecendo nos últimos tempos. Alguma coisa me arrancava contra minha vontade da confusão pacífica dos poucos sonhos que eu ainda conseguia ter. E depois, acordado, eu tinha que encarar novamente a realidade e os desgostos que eu vinha acumulando e não sabia mais como lidar. Um facho de luz solar atravessava a janela e me mostrava que provavelmente já passava do meio dia. Para mim, o horário já não fazia muito sentido, principalmente nos finais de semana. Eu ia vegetando pelos dias e noites que se seguiam, fazendo o mínimo que precisava para me manter empregado e ter alguma aparência de normalidade na minha vida.
Olhei o celular, jogado ao lado do meu travesseiro. O visor mostrava o horário e uma dezena de mensagens não respondidas em minhas redes sociais. Eu estava tão cansado do mundo quanto acredito que o mundo estava cansado de mim. Toda aquela bosta enlatada que a internet oferecia que sempre conseguiu me entreter e me distrair de minhas preocupações, já não fazia nada a não ser agravar minha ansiedade.
Peguei o aparelho nas mãos e já ia desligá-lo quando o ele começou a vibrar.
Era Clara.
Não esperava uma ligação dela, ainda mais naquele momento, mesmo assim, atendi.
- Alô. –Disse desanimado
- Oi Rômulo. Você tá em casa?
- Estou sim. Acabei de acordar.
- Então abre a porta.
- Ahn?
- Isso. Estou aqui na frente.
- Ok. Já vou.
Desliguei o telefone e me sentei na cama.
“Puta que pariu” – pensei.
Eu não me sentia em condição de qualquer interação social, mas talvez esse fosse justamente o motivo para que eu lhe atendesse...
Me levantei, vesti uma bermuda e uma camisa qualquer e fui ao banheiro.
Encarei meus olhos vermelhos e as vastas olheiras que cresciam abaixo deles. Olhei meus dentes amarelados, a barba mal cortada, o cabelo desgrenhado. Eu parecia um fantasma, uma projeção mal acabada de mim mesmo. Parecia que eu tinha voltado de uma guerra. Mas a única guerra que eu vira estava ocorrendo dentro de mim, e com certeza eu estava perdendo feio.
Escovei os dentes, joguei um pouco de água na cara e me enxuguei. Estava uns 5% mais vivo. Era o melhor que eu ia conseguir ali.
Sai do banheiro e desviei pelas coisas caídas no chão do kit net que eu chamava de casa. Era um moquifo, eu mesmo reconhecia.
Vi a silhueta de uma mulher magra, com um vestido azul, pelo vidro da porta de alumínio.
O sol que vinha da rua incomodava minha vista, mas acho que vi um sorriso no rosto de Clara.
Abri a porta e ela realmente estava sorrindo.
- Oi, moço. Tudo bem?
- Acho que sim. – Respondi um pouco atarantado.
- Posso entrar?
- Claro, me desculpa... Não liga pra a bagunça.
- Realmente, isso aqui tá uma zona. Mas eu gostei.
Deixei-a entrar e puxei uma cadeira para ela.
Ela deu dois passos pra dentro e me abraçou sem avisar.
Fiquei um pouco sem jeito, sem saber como retribuir inicialmente.
Ela se afastou e me olhou nos olhos de uma forma quase maternal.
- Eu sei que tá doendo. Você não precisa fingir que tá bem.
- Não conseguiria fingir, nem que eu quisesse. Só que já to nesse estado há tanto tempo que já nem estou sentindo direito.
- Eu sei como é. Mas não pode ser assim.
- Não pode. Mas o que eu vou fazer?
- Abrir as janelas e deixar alguma luz entrar nessa casa já seria um bom começo. Uma faxina também ajudaria.
A forma espontânea com que ela falou me fez sorrir, e quando ela percebeu, outro sorriso brotou na sua face.
- Tá. Posso abrir as janelas, mas a faxina vai ficar pra outro dia.
Me levantei e afastei as cortinas e abri a janela do quarto e da sala.
De uma hora para outra, a caverna em que eu me escondia ficou um pouco mais habitável.
Clara começou a andar pela pequena sala e fixou os olhos nos livros na estante e na minha coleção de discos de vinil.
- Você tem algum de Caetano?
- Tem uma coleção inteira ai. Pode botar qualquer um que quiser pra tocar.
Clara começou a procurar entre os discos e depois de um tempo puxou um, triunfante.
Colocou um disco para tocar e ficou curtindo a vitrola chiar enquanto a agulha corria pelo disco preto.
- É um som tão mais quente, não é? Mais humano. Sei lá.
- Verdade. Eu gosto dessas coisas velhas mesmo. Minha avó me deu quase todos esses discos quando meu pai morreu. Alguns são deles, alguns são dela.
- Sua avó tem muito bom gosto.
- Tem sim.
Clara veio para perto de mim e pegou na minha mão.
Sentamos no chão, um de frente pro outro e eu fiquei um pouco tenso, sem saber o que dizer.
- Eu sei que nada do que eu fale vai fazer você se sentir melhor imediatamente, mas eu queria dizer que já considero você como meu amigo, e me preocupo realmente contigo.
As palavras de Clara me acertaram de um jeito que terminei por me desarmar e toda minha tristeza e agonia, que eu fazia questão de manter encarcerados dentro de mim, escorreram pelos meus olhos.
Segurei rapidamente o choro, e balbuciei algumas palavras.
- Eu não sei como lidar com tudo isso.
- Acho que ninguém sabe, Rômulo. Pelo menos no início.
- Olha, eu já lidei com umas tantas decepções amorosas, mas nunca com algo assim.
- Qual a diferença?
- Os meus relacionamentos anteriores, apesar frustrados, foram reais. Houveram mentiras e decepções, claro. Mas pelo menos a coisa toda foi real. Dessa vez não. É desesperador descobrir que tudo o que vivi nos últimos dois anos não passou de uma coleção de mentiras.
- O que você sentiu foi uma mentira?
- Não. Mas a parte dela...
- A parte dela não interessa. Você não pode se culpar pelos erros dos outros. O que importa é que o que você sentiu foi genuíno.
- Em teoria isso deve funcionar. Mas agora não tá dando pra pensar assim, por mais que eu queira, Clara. Eu queria que fosse possível apagar essas lembranças da minha memória, como naquele filme, “um brilho eterno de uma mente sem lembranças”.
- Não é tão simples assim, mas um dia você vai lembrar dessa história e ela não vai ter esse peso todo. Você não precisa crer nisso agora, só aceita tua dor e vai seguindo da forma que você puder. Uma hora vai passar.
Clara pôs a mão sobre a minha e entrelaçou os dedos entre os meus.
Naquele momento eu pude perceber que ela falava sobre tudo com certo conhecimento de causa. Não era simplesmente alguém que falava as palavras certas para acalmar uma pessoa que está sofrendo...
- Parece que você sabe exatamente do que está falando. De alguma forma eu sinto que você sabe bem o que eu estou sentindo e por isso essa sua identificação com minha situação.
- Passei por isso que você está passando recentemente, talvez não com a mesma gravidade no caso das mentiras, mas fiquei assim por uns cinco meses. Eu fui decaindo, definhando, me isolando... até que morri.
- Morreu?
- Sim. Morri.
- Você parece bem viva.
- Hoje eu estou. Mas uma noite dessas eu morri. Todo aquele sofrimento morreu junto... E ai eu acordei, abri a janela e vi que o sol estava lindo.
- Entendi. Parece um bom final feliz.
- Nem tão feliz, pelo menos por enquanto, mas foi um alívio.
- Eu não entendo por que você se dá o trabalho de ouvir minhas ladainhas... quando eu nunca fiz nada para merecer essa atenção sua.
- Não vejo dessa forma. Estamos nos ajudando. Quando eu estive mal, achei que ninguém apareceria, mas foi justamente o contrário. Eu me vi cercada de pessoas que queriam o meu bem. E é por isso que eu estou aqui.
- Não acho que vai ser hoje o dia que eu vou superar isso tudo, mas eu não vou esquecer o que você está fazendo por mim, Clara. Você disse que já me considerava como seu amigo, e eu posso dizer que te considero da mesma forma.
Clara ficou um pouco sem graça e sorriu com o canto da boca.
Me levantei para virar o lado do vinil que tinha parado de tocar.
Nos sentamos um do lado do outro e ouvimos musica pelo resto da tarde conversando sobre nossas vidas e histórias conturbadas.
De noite, fui deixá-la no ponto de ônibus e voltei para casa me sentindo um pouco mais leve.
Meus problemas estavam longe de serem resolvidos. Não ia ser uma amnésia que ia me fazer superar tudo. Era uma questão de tempo, de aceitação dos fatos e, sobretudo de esperança.
Clara só me mostrou que não era uma questão de esquecer o que passou,
mas de lembrar do que realmente vale a pena.
Do que é realmente importante...