Realidade inversa

A vida me parecia tediosa da janela do meu quarto, minha cidade era um lugar muito monótono e completamente parado no tempo, charretes ainda passeavam pelas ruas, e a arquitetura dos anos cinquenta ainda prevalecia.

E por mais que tenham encontrado o amor, restavam aqueles velhos corações amargurados, e mentes fechadas que eram facilmente percebidas por qualquer pessoa sã, e isso me entristecia um pouco e me fazia sentir vontade de me trancar em meu quarto, apagar as luzes e refazer meu mundo de acordo com meus olhos, que ali nada enxergavam além de sonhos reprimidos por meus pais. E mesmo assim eu enxergava aquele lindo castelo acinzentado pelo desgaste das pedras, e bandeiras avermelhadas tremulavam perante o vento forte que ali assoviava em meus ouvidos uma linda canção, e ao olhar para o céu senti com mais clareza aquela terra levemente umedecida se entrelaçando com os dedos de meus pés.

A sensação de imaginar um lugar livre de regras que te subjugam é tão leve que eu precisei me segurar nos galhos de uma árvore para não voar por aí sem rumo. Assim me ponho de volta ao chão, retomo o imaginar do meu mundo perfeito, mas os gritos me puxam de volta para o mundo real, e mais uma vez eles estavam brigando, e tudo aquilo ecoava até minhas imaginações, estilhaçando de pouco em pouco cada centímetro criado por mim, encolhido no canto eu fechei meus olhos com força e tapei meus ouvidos o máximo que pude, e comecei a cantarolar a música que o vento sempre assoviou para mim, e de pouco em pouco tudo estava retornando ao seu devido lugar, árvores e flores ganhavam cor novamente, pedras se encaixavam como peças de lego, a água repousava sobre o rio que ali passava e tudo estava bonito novamente, mas bem longe no horizonte eu avistei a tempestade, tenebrosa e obscura, coberta por nuvens pesadas e gritos estrondosos vindos de raios e trovões, nada disso me alegrava, mas eu nada podia fazer, por ser pequeno e frágil perto de tal grandiosidade eu continuei a imaginar que tudo isso iria acabar em um belo dia deitado no campo, olhando o formato das nuvens e sorrindo para o grande abismo que é o universo, mas a tempestade chegou...

E junto com ela raios e trovões, mas eu não me mexi, continuei ali deitado, recebendo a chuva diretamente em meu corpo, aproveitei de meu rosto molhado para disfarçar meu choro, aproveitei do frio para disfarçar meus membros trêmulos, aproveitei dos gritos para soluçar enquanto desejava que tudo isso acabasse, mas o tempo só piorou, os raios vieram para cima de mim, o vento ficou mais forte, e um tornado estava se formando.

Uma mão me puxou para o alto, eu estava a mercê de todo aquele vento que carregava tudo que via pela frente, fui sacudido de um lado para o outro, perdendo minhas forças, então fui jogado ao chão, meus olhos fixaram no horizonte e lá estava com um tempo azulado e ensolarado, então me levantei esticando minhas mãos para frente e andei lentamente, andei mais rápido e por fim eu estava correndo sem parar, deixando as lagrimas para trás, observando a tempestade se distanciar e os barulhos diminuírem, o horizonte ensolarado estava logo ali.

Desci as escadas com pressa, abri a porta da frente sem nenhum remorso e corri, tropeçando e meio desajeitado, mas corri sem parar, sem olhar para trás e por fim sem chorar, e os únicos gritos que eu escutava eram meus gritos de felicidade, gritando para as árvores, para o céu e para o mundo que eu estava fora da tormenta, gritando para todos que quisessem ouvir que eu estava livre das amarras, iria morar numa montanha, com uma bela casa, longe das pessoas, longe de tristezas e tão alto que as tempestades já não podiam me alcançar.

Eu achei o meu lugar, construí tudo que que necessitava, sentei-me na frente de casa, cruzei minhas pernas e fechei os olhos, senti a brisa bater em meu rosto e sorri, escutei os pássaros cantarem, escutei as copas das árvores se mexerem para lá e para cá, tudo estava em plena sintonia.

Me deitei ali mesmo, me estiquei completamente e fechei meus olhos, assim eu cochilei por horas sem imaginar o que viria depois, sem ser perturbado e sem chorar...

Acordo lentamente, meu corpo dói, meus olhos parecem inchados, não consigo dobrar meu pescoço, mas logo percebo que já não me encontro naquele lugar relaxante, estou dentro de um quarto completamente fechado e extremamente branco. Eu forço meu pescoço e consigo enxergar meu corpo, está completamente imóvel, minha perna esquerda está engessada e meus braços todos cortados.

Senti uma sensação de pânico, não sabia o porquê de tudo isso, então meus pais entram pela porta, eles estavam chorando mas tentavam sorrir quando me encaravam, meu pai veio pelo lado direito da cama e minha mãe pela esquerda, cada um deles pegou em minhas mãos, eu me senti mais confortável com isso, e feliz de ver que não estavam brigando mais, então eles me explicaram toda a história, e foi ali que me lembrei que no momento que avistei o horizonte tão desejado, eu corri em direção a janela e despenquei do terceiro andar, e fiquei em coma por um mês.

Senti toda aquela felicidade na palma das minhas mãos, eu quase fui feliz!

Era apenas mais um sonho e a terceira vez que eu tentava me suicidar, assim a médica disse, e que eu tinha deixado de tomar meus remédios por meses, e isso desencadeou visões e deixou minha doença mais grave, e que devido a isso eu estava agressivo e meus pais estavam apenas tentando me conter, foi então que percebi que os gritos eram meus, e a tempestade também eram eu, os raios eram flashes de luz que eu enxergava da realidade e os trovões meus socos na parede, foi ai que percebi que nunca poderia viver no horizonte tão sonhado e nem na tempestade, eu fui fadado a viver entre a felicidade e a tristeza, entrar em um coma de remédios e não sonhar mais, não viver mais.

A minha realidade era a verdadeira confusão e meus sonhos a verdadeira tempestade, agora estou aqui, deitado, a minha esquerda meu horizonte, a minha direita a minha tempestade e eu estou de mãos dadas com eles me tornando um só, um homem não real, um sonho ou devaneio.