Só uma página de jornal
Seu Jorge é funcionário da Macaé desde os dezessete anos. Primeiro, serviço de rua, mensageiro. Passou pela escadinha, degrau por degrau, agora é contador.
Para setembro, aumento no ordenado. Seu Jorge é isso: vinte e oito anos, cinco de casado, Das Graças e Jorginho, de três anos e meio.
Seu Jorge é funcionário da Macaé. A Macaé vai bem, obrigado. Ganhou várias concorrências importantes de um ano para cá. Os funcionários foram aumentados, tanto em número quanto em salário. Os do escritório e os braçais.
Seu Jorge agora é o contador-geral da Macaé Construtora S/A.
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A tragédia é como forro de plástico nas mesas das casinhas dos bairros proletários: não pode faltar. Seu Jorge teve morte horrível. O lugar onde descansava a cabeça tinha virado açude de sangue. O braço direito fazia um ângulo reto, dobrado no cotovelo. Um revólver ao lado, instrumento veterano nessa espécie de suicídio. Tiro no ouvido. Das Graças tinha se abobalhado, a constituição fraca, muito embora a ligeira gordura na órbita equatorial do corpo, não tinha suportado o tamanho das emoções. E estava caída no quartinho de despensa, quando chegavam os caras da polícia.
A vizinhança espancava o silêncio.
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Se o ordenado passar mesmo para oitocentos contos, vai ficar tudo melhor. A gente se muda daquele bairro escuro, eu até mando Das Graças pra uma educação física, aquela gordura vai acabar, dou aquele presépio bacana pra mamãe, mando fazer um terno bom com o tergal que o Jorginho me deu no Dia dos Pais...
Seu Jorge está na Remington, mas está mais nos sonhos. Seus dedos tocam as teclas, mas os ás viram quês, bês e vês se dividem no papel, um vem sempre no lugar que deveria ser do outro....
Eu compro a geladeira! Ah, se compro! Seu Marciano falou que facilita. E troco a pintura da casa, se a gente ficar lá ainda. E compro a bicicleta do Jorginho, andar de bicicleta é muito importante para o desenvolvimento psicológico também, o menino aprende a se cuidar. ...
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- Seu Jorge, a empregada da sua casa tá aí.
- Já vou.
Não quis falar com seu Jorge lá dentro. Chamou lá fora, na sala da telefonista.
- Seu Jorge, Dona Das Graças mandou chamar. Depressa.
Seu Jorge foi. Apavorado, Das Graças não faria a besteira de chamá-lo à toa, na hora mais apertada do escritório!
Mas não foi nada de anormal. Só Jorginho que tinha sido atropelado e levado em estado grave para o Pronto Socorro. Se Jorginho não fosse tão importante para seu Jorge e não tivesse morrido, ninguém saberia dessa estória que os jornais todos publicam. Se Jorginho tivesse sobrevivido, seu Jorge não teria se suicidado, Dona Das Graças não teria ficado maluca, enfim, a estória não teria existido.
Mas, convenhamos, é só uma página de jornal. E ela pode ser queimada. Simples afastarem-se os fantasmas, que talvez nem tenham mesmo existido.
(Belo Horizonte, MG, 03/08/1971)