O ABRAÇO DA VÊNUS
Como sempre, a grande galeria de pintura italiana no museu do Louvre - ala Denon -, estava repleta de turistas, que com ou sem conhecimento refinado de arte, apreciavam as telas com olhos maravilhados. O renascimento estava quase todo ali, debochando de nossa atualidade quase sem graça.
Cassandra estava olhando frontalmente uma das mais famosas pinturas de Da Vinci. Ela vestia roupas leves, típicas de uma turista tentando se passar por parisiense nativa.
- Acha que o gesto de Uriel representa a cabeça cortada de João Batista? Ele estaria aconselhando ou prevendo?
Ele olhou atentamente a “Dama das Rochas” antes de responder. Jesus e João Batista, ainda meninos, Maria no centro e o arcanjo Uriel em um gesto interessante, com o braço estendido, apontando para um dos meninos. Provavelmente João.
Ricardo era um sujeito baixo, sem qualquer criatividade para se vestir. Seus óculos eram de aro exageradamente fino, coisa que já não se via muito por aí.
- Difícil dizer o que realmente Da Vinci estava pensando. De qualquer forma, eu aposto que sim. Algo do tipo “Maria, precisamos acabar com esse sujeito antes que ofusque seu filho”.
Como sempre Cassandra não havia dado sequer ouvidos para a resposta da pergunta que havia feito. Respirou fundo enquanto andava lentamente até a próxima obra.
- Por que Paris? Por que depois de mais de vinte anos de casados você resolveu que deveríamos vir para Paris?
- Paris sempre foi seu sonho, obsessão até. Lembro você falar em Louvre, Eiffel, Pantheon, Moulan Rouge desde que nos conhecemos...
Cassandra esboçou um sorriso sarcástico. O mesmo ensaiado durante anos, sem tirar nem pôr.
- Se fosse quando nos conhecemos, eu entenderia. Mas agora realmente não faz sentido. Confesso que não sabia o que pensar. De repente, do nada, você chega e diz que comprou duas passagens para Paris... juro que chegou a passar pela minha cabeça a imagem de você me empurrando do alto da torre Eiffel.
Ricardo não se sobressaltou. No fundo, ela estava certa. O amor havia terminado há muito tempo: conflitos diários, longos momentos de raiva, indiferença recíproca. Uma construção que desabou aos poucos, primeiro o telhado, depois as paredes, e por fim olhavam para aquele amontoado de escombros sem coragem para reconstruir ou de ir embora.
- Você sabe que nunca tive impulsos homicidas. Sei que sempre falo em te matar, mas acho que ambos sabemos o sentido figurado da frase. Além do mais, qualquer outra torre serviria. Não era necessário gastar com uma travessia de oceano para dar cabo de você. Estamos juntos, não estamos? Apesar de tudo, ainda estamos casados. Achei que gostaria de ter este sonho realizado.
- É claro que gostei. Só nunca imaginei que seria por você. Nem com você.
A sala da Mona Lisa, em um dos espaços vizinhos, como sempre, estava apinhada de turistas japoneses que seguiam religiosamente o guia. Uma bandeirinha amarela amarrada na ponta de um mastro ditava o rumo. Ricardo sentou-se em um dos bancos esperando a dispersão dos asiáticos enquanto Cassandra mantinha suas atenções na parede de entrada onde estava "O Banquete de Canaã" , o maior quadro do Louvre.
- Como chegamos a isso? - disse Ricardo. - Não me refiro às nossas brigas, que por sinal estão cada vez mais amenas por conta da indiferença. Falo de como aguentamos isso. Qualquer casal normal já estaria separado há muito tempo.
- Esse quadro é absurdamente incrível: tamanho, detalhes, cores. Todos ficam fascinados pela Mona Lisa de quarenta centímetros e quase não percebem que bem a suas costas está este turbilhão maravilhoso.
Passou quase um minuto de silêncio quando ela novamente falou.
- Perdemos a oportunidade. Lá atrás, quando era possível, deixamos escapar. Agora, nos falta coragem, vontade ou sei lá o que.
- Sabe, ainda temos tempo para desistir. Talvez agora não tenhamos as mesmas opções da juventude, mas quem sabe abrandaríamos o coração com uma nova perspectiva.
- Se pelo menos tivéssemos tido filhos.
- Filhos? Eu não gosto do que o mundo se tornou, ou do que eu me tornei. Nós nunca tivemos filhos porque as decepções bastavam a nós mesmos. Por que dividi-las com alguém que ainda dependeria de nós?
O cardume de gente ia e vinha. Se queriam apreciar o mais famoso quadro de Da Vinci teriam que embrenhar-se na selva. Ricardo ficou de longe, conformado com a distância. Cassandra, porém, não tinha vindo até ali para limitar-se a uma barreira de babel. Foi entrando, empurrando, avançando, até ficar o mais perto possível do quadro. Já tinha visto aquele rosto em muitos lugares: livros, propagandas, enfeites e até porta-copos. Agora, diante do original, não lhe pareceu grande coisa.
- Muita expectativa, – disse ela no retorno – e nada de mais.
- Você sempre criou expectativas demasiadas sobre tudo.
- Nosso casamento é um bom exemplo disso.
- Como sempre tem razão, apesar quase sempre estar errada.
Caminharam devagar, apreciando as coleções. Deixaram a ala Denon e seguiram arriscando caminhos, escadarias e portas. Sem um mapa em mãos, andavam a esmo entrando e saindo de salas como quem busca o fim de um labirinto. Chegaram até o térreo da ala Sully, ficando frente a frente com a Vênus de Milo.
- Segundo dizem, ela estaria segurando uma maçã. - disse Cassandra pescando na memória algo que tinha lido em algum lugar.
- Chega a ser uma boa metáfora: perder os braços para não tocar no pecado. Não é isso que dizem da maçã? O pecado original?
- “A mulher e o pecado original”, conheço bem esta calúnia. Não sou do clube das feministas ferrenhas, mas reconheço que vocês nos deram uma boa rasteira usando essa coisa de maçã.
- Não me olhe com esta expressão frágil. Nós dois sabemos que você nunca foi uma mulher vulnerável. Muito pelo contrário, sempre teve garras afiadas e um contra-ataque digno de Mohamed Ali.
Ela deu uma risada sincera enquanto observava atentamente a escultura. Das poucas coisas que sobraram, o humor dele ainda, às vezes, era um bom consolo.
- Estou viva e mesmo assim quase ninguém lembra de mim. No entanto a Vênus de Milo será sempre uma pedra imortal.
Voltaram a girar pelas salas, subindo e descendo escadas e por vezes indo parar exatamente onde já tinham estado. O Louvre poderia ser um belo quebra-cabeças para alguns.
- Estou cansado, vamos parar um pouco.
- Já são três horas da tarde e não comemos nada. E mesmo assim não estou com fome.
- Talvez eu a convide para jantar depois daqui.
- Quem sabe...
Em algumas salas haviam pintores reproduzindo as valiosas telas com uma competência de dar inveja. Ficavam de frente à obra, com seus cavaletes, pincéis e tintas na intenção de reviver, por outras mãos, o que por si só já era perfeito.
- Acho que o tempo nos tornou amargos. - disse Ricardo visivelmente abatido pelo cansaço. - Sem ninguém para culpar por nossas decepções, apontamos um para o outro. Errado, mas cômodo.
- Houve um momento, bem lá atrás, em que entrei em desespero. Nosso casamento não estava funcionando. Eu não estava feliz e parecia que não havia qualquer saída possível, como alguém que se arrepende profunda e sinceramente dias depois de fazer uma tatuagem. Mas hoje penso um pouco diferente. O que quer que tivesse escolhido na época, seja outro caminho, outra pessoa, eu ainda assim sentiria que estava perdendo algo. Afinal, escolher é abrir mão de outras possibilidades que passam então a ter vida perfeita em nosso sonhos. Não é onde está a perfeição? Nos sonhos?
- Talvez se pelo menos um de nós não tivesse a natureza tão inflexível, muitas cicatrizes poderiam ter sido evitadas.
- O passado é sempre tão pedagógico, não acha? - disse de forma zombeteira – O que falta é a nossa disposição em aprender.
Na ala "Richilieu" depararam-se com os aposentos de Napoleão III. Móveis magníficos, talheres, cristais tudo denunciando uma época descaradamente confortável para alguns poucos. Cassandra percebeu o cansaço além do normal de Ricardo.
- Por que não senta ali? - disse enquanto apontava cinicamente para o divã vermelho que deveria ter servido muitas vezes de descanso para o autoproclamado Napoleão III.
- Não deve ser confortável. Nada com mais de cem anos deve ser.
Ricardo recostou-se em um banco de madeira junto a parede e denunciou a exaustão. Suava um pouco e respirava com alguma dificuldade.
- Você está bem?
- Só cansado. E acho que de tudo!!!
Ela voltou seu olhar com curiosidade para Ricardo.
- Cansado de tudo!? Agora compreendo!!! Foi por isso que me trouxe até Paris! Para finalmente definir nossa situação? Algo do tipo “hei, estou lhe dando a viagem de seus sonhos, por isso nada mais justo que um divórcio amigável”. Por que se for isso, acho que perdeu dinheiro, pois não sou mulher de fazer escândalos, pelo menos não tenho mais aptidão, vontade ou idade para isso.
- Não vamos nos separar. Pelo menos não da forma que você está pensando.
- O que está querendo me dizer?
Ricardo fechou os olhos. Nunca fechava os olhos, pelo menos não durante o dia. Depois de um longo período resolveu falar.
- A alguns meses fui a uma consulta médica por causa de dores de cabeça insuportáveis. Ele me enviou para um especialista. Fiz exames e mais exames e... bem, fui diagnosticado com câncer.
Cassandra, que ouvia de pé, resolveu sentar-se. Suas feições, agora geladas e sem expressão, denunciaram pela primeira vez uma mulher confusa.
- Você está com câncer? É isso mesmo que ouvi?
- Sim.
- E o que está fazendo aqui? Por que não está em tratamento?
É claro que a primeira pergunta que Cassandra pensou que deveria ser feita era “porque não me disse antes, afinal sou sua esposa?”, mas anos de um casamento difícil, com afastamentos sistemáticos e uma persistente incerteza sobre o que realmente viviam, tornavam uma pergunta como essa no mínimo fora de contexto.
- Qualquer tratamento agora seria paliativo. Eu não quero isso. O fato, Cassandra, é que as coisas vão mudar em pouco tempo.
Cassandra estava incrédula. Não sabia o que dizer. Ou tinha medo de fazê-lo. No fundo não distante da sala estava o retrato em óleo de um senhora francesa do século XIX. Olhos penetrantes, corpete verde e um penteado característico.
- Ela é imortal, - disse Ricardo apontando o quadro com o nariz- a Vênus também. Quem sabe se eu morar aqui no Louvre...
- Não quero que brinque com isso.
- Estou morrendo, Cassandra. Brincar é o que me resta. Me deixe brincar!!!
E Ricardo chorou. Despiu-se completamente na frente de Cassandra, jogando às favas sua pesada e desconfortável armadura.
Ali, no banco de madeira em frente a uma cama que tinha pertencido a Napoleão III, Cassandra abraçou o marido pela primeira vez em muito tempo. E chorou com ele sentindo o perfume dos anos perdidos. Naquele abraço e nas lágrimas, havia perplexidade, tristeza, compaixão, medo e solidariedade.
E talvez amor.