Solitaire e o Anjo Zulu – Parte V - Final

Solitaire e o Anjo Zulu – Parte V - Final

Fico um pouco mais calma agora.

- De onde você é ? Viaja sozinha ?

- Sou brasileira e estou mesmo só. Mas tenho amigos me esperando no hotel.

- Eu sou da África do Sul. Estou aqui estudando Economia.

- Que legal ! E sua família veio com você ?

- Não. Eles só podem vir no Natal. Eu estudo à tarde e à noite. Depois vou trabalhar. Num Pub. Estava indo para lá quando vi você e ... já disse que fiquei impressionado . O que foi? Fica encabulada ?

Bem...fico, sim.-

- Você tem namorado ?

- Eu sou casada e tenho dois filhos.

Ele ri .

- Você está brincando, não é ? É muito nova para ter dois filhos. E se fosse casada não estaria aqui sozinha. Estaria com seu marido.

- É que me casei muito jovem e meu marido não quis me acompanhar na viagem. Então vim sozinha mesmo . Gosto muito de viajar.

Ele me olha agora sério, e parece pensativo.

- Você não aparenta ter mais de 27 anos. Eu tenho 23....

- Fico feliz em ouvir isso. Você é mesmo muito gentil.

- Não é gentileza. Falo o que o penso, baseado naquilo que vejo. E vejo uma jovem que nunca deveria ser deixada sozinha por aí. Isso não se faz.

Penso em concordar com ele, mas me calo. Como explicar a um jovem príncipe o que é a solidão ? Prefiro mudar de assunto.

- Você me ajuda a chegar ao Hotel. Estou no Cumberland, em frente ao Hyde Park. Sabe como chego até lá ?

Ele ri de novo, agora balançando a cabeça.

- Nossa ... conseguiu se perder mesmo, hein ? É muito longe daqui. Mas levo você até lá, ok ?

- Você trabalha lá por perto ?

- Não, pelo contrário. Estava indo na direção oposta. Mas não vou deixar você voltar sozinha.

- Não é preciso se incomodar. Basta dizer quais ônibus devo tomar ...

- Nada disso. Vou levar você. Vem comigo.

E me puxa pela mão, atravessando a rua. Entra num beco quase sem iluminação e segue caminhando descontraidamente. Olho em frente e não consigo ver qualquer sinal de luz ou movimento. Parece ser um bairro indústrial, e nesse lugar não há casas. Somente galpões e lojas fechadas. O medo volta, e intenso.

Solitaire me incomoda : “ Você está em perigo, sua louca. Não percebe que o Zulu lhe tirou do caminho mais seguro e agora está lhe arrastando por um beco estreito e escuro ?

Você não lembra de Jack , o Estripador, não ? “

Novamente tento não entrar em pânico. Penso em gritar, mas não é meu estilo. E ninguém iria ouvir mesmo. Penso em correr, mas aquela enorme mão que segura a minha me faz ver o quanto seria vã qualquer tentativa.

Ele caminha a passos lentos, sempre me olhando e fazendo perguntas. Está alegre. Sua voz é doce, mas agora me faz tremer... Vou respondendo maquinalmente, tentando demonstrar naturalidade. Mas estou apavorada.

- O que você fez hoje ?

- Conheci o Museu de História Natural e a Torre de Londres

- E o que você viu por lá ? O que mais gostou ?

- De tudo. As jóias da rainha são impressionantes . Do Museu, gostei muito da ala de mineralogia. Vi muitas pedras preciosas. Gemas e geodos magníficos !

- Todos roubados do meu país. E de toda a África

- Eu sei. O Museu Britânico também é uma imensa vitrine de espólios. Belezas e riquezas roubadas de muitos lugares, ao longo da História. Vi coisas realmente belíssimas, mas não deixa de ser revoltante também...

De repente ele para à minha frente. Muito perto. Olha bem dentro dos meus olhos, que devem estar um tanto arregalados. Continua segurando a minha mão.

- Posso dizer uma coisa ?

- Pode.

- Além de bonita, você é inteligente e sensível. Estou gostanto muito de você.

- Olha, eu ...

- Você quer ir comigo para o Pub? É divertido por lá . Tenho muitos amigos que queria lhe apresentar. Tenho certeza de que você vai gostar. E enquanto estiver trabalhando, fico tomando conta de você. De manhã a levo para o hotel. Que tal ?

- Não posso. Sinto muito. Estou cansada e daqui a algumas horas vou seguir viagem. É meu último dia aqui. Além disso não deixei nenhum recado e meus amigos certamente estão me procurando.

Ele se cala, mas continua me olhando. Um olhar carinhoso. Um meio sorriso nos lábios. Muito próximo. Sinto algo estranho, como misto de constrangimento e bem-estar. Não sei o que pensar, nem o que fazer...

Solitaire me alerta : “Olha só por cima do ombro dele . Vocês estão em frente a uma loja semi demolida.

Nem dá para enxergar lá dentro. Porque você acha que ele parou justamente aqui, hein ?

Só para dizer gracinhas ? Melhor você começar a gritar agora, que esse cara vai fazer uma maldade enorme.

É só ele querer. Você está vendo a outra mão dele ? Nem eu.

Deve estar pegando a navalha. A navalha, esqueceu ? “

Observo atentamentre o cenário. Realmente perfeito para um crime. Ele poderia me arrastar facilmente para a ruína. Fazer o que bem entendesse. Poderia me matar.

E eu sem conseguir ver uma saída para aquela situação. Penso que jamais me senti tão frágil.

Tão abandonada pelo Acaso. Traída, até.

Fecho os olhos e tento falar com Deus, mas não consigo . Só consigo pensar nos meninos.

Não me importa a dor que a morte cause. O fato de não ver seus rostinhos novamente vai doer muito mais...

Procuro fixar na memória a imagem dos meus filhos, pois é tudo o que pretendo levar comigo.

Ouço uma risada gostosa.

- Ei, o que foi ? Você está dormindo em pé ?

Abro os olhos e a boca, com cara de susto. Ele ri ainda mais.

- Desculpe, é que eu estava pensando.

- Pensando em que ?

- Nos meus filhos. Estou com saudades deles.

- Sabe...você ficou aí, de olhos fechados... quase lhe dei um beijo, sabia ?

- Por favor, não faça isso porque....

- Você é comprometida mesmo, não é ? E tem filhos?

- Claro que sim. Por que eu mentiria ?

- Desculpe, não quis duvidar de você. Mas preferia que não fosse verdade ...

Gostei mesmo de você, da sua companhia.

- Tudo bem. Não precisa se desculpar, ok ?

- Vamos caminhar, então. Sei que esta rua é estranha, mas por aqui chegamos mais rápido ao local aonde passa o seu ônibus. Só falta uma quadra.

- Posso perguntar uma coisa ?

- O que ?

- Por que você está segurando a minha mão ?

- Não sei, deu vontade. Isso lhe aborrece ?

- É que isso não é muito comum, sabe ?

- É meu jeito de proteger você. Desculpe, não queria lhe constranger....

Larga minha mão e guarda a dele no bolso do casaco. Prosseguimos caminhando, agora em silêncio.

Ele olha para o chão e seu sorriso desapareceu. Não sei bem o por quê, mas me sinto a maior idiota do mundo ! E a mais desprotegida também...

- Escuta, acho que fui grosseira com você. Me desculpe, sim ?

Ele responde meio sem jeito :

- E eu fui impulsivo. Não sei porque fiz isso. Não devia.

- Ok, vamos fazer uma coisa? Me dá a sua mão de novo ?

O sorriso retorna, dessa vez radiante. A grande mão volta a envolver a minha. Seguimos conversando animadamente. Trocamos e.mails’s e telefones. Falamos sobre a África e o Brasil, prometemos que um dia visitaríamos o país do outro .

Chegamos ao ponto do ônibus de mãos dadas, alegres.

Ele olhou o relógio de pulso.

- Olha, você já fez muito por mim hoje. Pode ir para o seu trabalho. Eu fico bem aqui .

Não se preocupe comigo , tá bem ? Você já deve estar muito atrasado.

- Tem certeza ?

- Tenho. Pode ir tranquilo. E obrigada por tudo .

Havia um casal de velhinhos no ponto. O rapaz foi até eles e perguntou se poderiam tomar conta de mim. Por sorte, estavam indo para a estação de Waterloo, onde me indicariam o segundo ônibus. Mais tarde esse casal pediria ao motorista para também cuidar de mim, me deixando na porta do hotel. Ficaram me olhando discretamente, sorrindo com benevolência. O rapaz veio se despedir .

Chega bem perto e me dá um grande abraço. Fico totalmente sem ação. Parece uma montanha de afeto me aquecendo. De forma suave. E diz no meu ouvido :

- “Se cuide. Não seja tão só. E seja feliz. “

Beija de leve o meu rosto e vai embora. Fico parada vendo a silhueta se afastando, e naquele momento pondero firmemente sobre a existência de Anjos. E eles podem ser tão reais...

Solitaire está muito quieta, e me parece um tanto triste . Solta um longo suspiro, e por fim se cala.

Naquele seu jeito estranho de nunca se explicar...

Enquanto isso, meus olhos agradecidos abençoam o Anjo Zulu, que desaparece mansamente na escuridão.

Volto a ouvir a antiga canção : "While my eyes go looking for flying soucers in the skies..."

Claudia Gadini

21.08.05

*** História real. Londres, Julho de 1999. Quatro meses depois, li a notícia do assassinato de um príncipe Zulu nos arredores de Soweto. Nesse dia Solitaire chorou. ***