Incertidão de Nascimento

A última coisa que o pai lhe disse no leito de morte foi: “Meu filho, seja alguém na vida!”. Mesmo tão criança, ele pensou consigo: Então eu ainda não sou? Enfim... José Ning Takashi, ou simplesmente Zé Ning, achava que seu apelido tinha sido dado por seu pai naquele fatídico dia, talvez por isso ele fosse muito obstinado. Quando pensava em desistir lembrava-se da tal frase e do rosto de seu pai, Nakayama Ning Takashi, o Seu Amendoim, um imigrante japonês que chegou ao Brasil para fugir dos terrores da guerra, e não havia conseguido muito, além duma pastelaria. Sua mãe era uma negra nordestina chamada Maria Adelaide.

Crendo na promessa da Tia Helô, que lhe dissera que no ensino fundamental seria bem mais legal, Zé Ning passou com sobras pela pré-escola. No ensino fundamental, o professor Elpídio disse algo semelhante. Já no ensino médio, Dona Ofrásia, pôs os pés de José Ning de volta ao chão: “Se não prestar o vestibular e ingressar numa boa universidade tudo será em vão, é lá que deves chegar!”. José Ning Takashi tinha dúvida se conseguiria, ele se lembrava dos vizinhos dizendo que [por causa da cor] sua ma mãe nem era gente, mas a voz de seu pai ecoava em seus ouvidos: “Meu filho, seja alguém na vida!”.

Contrariando o estigma de seu apelido, Zé Ning conseguiu passar no vestibular e ingressar na melhor universidade, enfim ele era alguém. Entretanto, logo soube que não conseguira concluir o curso se não arranjasse um estágio. Mesmo um tanto desapontado, o jovem mestiço conseguiu o tal estágio e concluiu [em primeiro lugar] o curso. Agora ele tinha um canudo, e dentro dele um documento que provava que ele era alguém, já que a certidão de nascimento não serve para tal fim.

Na empresa que o contratara, José Ning Takashi achou muito familiar as palavras de seu gerente, lembrava a Tia Helô do ensino fundamental lhe prometendo um porvir melhor, porem, diferentemente até da copeira, que tinham seu próprio cantinho para trabalhar, nem sala ele tinha. No organograma de cargos e salários Zé Ning estava na primeira de muitas etapas até chegar à presidência, onde ele de fato seria alguém. Novamente motivado pela lembrança do pai, Zé Ning galgou cargos, mas após trinta e cinco anos de trabalho ele ainda era diretor, faltava pouco para ele ser alguém, mas infelizmente chegara a hora de se aposentar. O presidente da empresa [um jovem rapaz] deu-lhe uma placa e disse: “Enfim o descanso merecido, agora será legal!”. Ele pode sentar no trono dum apartamento com a boca escancarada cheia de dentes e esperar a morte chegar. E ela chegou.

No enterro o padre: Aqui jaz José Ning takashi, agora ele está num bom lugar... Amém! No jazigo o seu nome comprovando que ali está enterrado alguém, será?

Vale lembrar que dia antes, em seu leito de morte ele falou a sua filha “Minha filha, seja feliz na vida!”.

[Inspirado numa palestra do Professor Clóvis de Barros Filho]

Átomo “Pseudopoeta” – Catando Contos – Tema “Zé Ninguém”