ZOINHO.

ZOINHO

- Dona Nica, por favor, reze para mim!

A velha benzedeira conhecia o rapaz desde que ainda estava no ventre materno. Foi ela quem fez o parto. Filho de gente boa. Pai padeiro e mãe costureira. Trabalhavam dia e noite. Queriam o melhor para o pequeno. Seria doutor. Não deu certo. Zoinho tinha parte com o demo. Ainda de calças curtas, de posse de uma espingardinha de mola, armada com uma barbatana de guarda-chuva, vazou um olho do Zé Carlos. Foi um Deus nos acuda. Daí o apelido Fura-zóio, depois simplificado. Se não era um líder da molecada, demonstrava mais inteligência, conversando quase como se fosse adulto. Não participava das brincadeiras, sequer das peladas no meio da rua. Suas atividades consistiam em assaltar os pomares, sempre sozinho. Depois, passou a furtar fios de cobre. Na adolescência, progrediu muito, tornou-se ladrão profissional. Aos dezoito anos a primeira condenação, roubo qualificado por violência. A mãe, envergonhada, ingeriu formicida. O pai, viúvo, não podendo mais encarar os amigos e vizinhos, sumiu no mundo. Ele, na cadeia, aprendeu a fumar maconha. Agora estava de volta. Na mesma rua onde nasceu.

- Menino! Tá na hora de tomar juízo!

- É, dona Nica. Já cumpri pena. Agora casei. Preciso de muita reza.

- Tá trabalhando?

- Fazendo biscates de mecânico.

- Trabalhar é bom. Faz pensar. Cabeça vazia é oficina do Diabo.

- É isso aí, dona Nica. O Diabo tá trabalhando na minha cabeça.

- Fala assim não menino! Deixa de besteira! Cê precisa rezar!

- Bem que tento. Mas o Capeta não deixa. Tá sempre me falando coisas.

Tenho medo de não resistir e fazer o que ele tá me falando. Sabe, dona Nica, já sou pai. Uma belezinha o moleque. Ri pra mim. De noite, quando chego do trampo, dou mamadeira pra ele. Depois, quando ponho ele no berço, vem aquela voz dentro da minha cabeça: - mata o menino! Mata o menino! – tenho que sair pra rua. Aí vou beber umas cachaças. É bom pra dormir. Reza pra mim!

***

- Zoinho, vou dispensar os seus serviços!

- Mas, por que? Não tenho trabalhado bem?

- É que um freguês reclamou.

- Do que?

- Bem... diz ele que sumiram umas coisas que estavam no porta-luvas do carro dele quando estava aqui consertando. Sabe como é... com os seus antecedentes.

- Juro que não fui eu!

- Acredito. Mas sou comerciante. Te dei uma chance. Bem que gostaria que você continuasse. Vou te pagar tudo. Ainda te dou mais um pouco. Só que não posso ficar com você. Afasta a freguesia. Você entende, não?

***

Não foi para a casa. Vagou pela cidade. Andou a tarde toda. Não sentia cansaço. A cabeça atormentada. Vazia. Passou no bar. Não cumprimentou ninguém. Uma cachaça atrás de outra. Também umas cervejas. Não queria pensar. Chegou em casa tropeçando. A voz: - mata o menino! Mata o menino! A mulher o colocou na cama. Nenhuma reclamação. Acordou de madrugada. Sentiu-se melhor, mas agora a voz era mais forte. Enrolou o menino e saiu para a rua.

Foi fácil entrar no maior edifício da cidade. Tomou o elevador e apertou o número doze. Depois subiu a escadinha da cobertura. A voz cada vez mais forte: - mata o menino! Mata o menino! Chegou à beira do precipício. Sentiu tontura.

***

Dona Nica dorme cedo e madruga. Reza ao deitar e ao levantar. Agora estava rezando pelo Zoinho.

***

- Não! Sai, tentação! Eu vou te vencer!

Agasalhou o menino. Colocou-o sobre um banco protegido e mergulhou.

antonio luiz fontela
Enviado por antonio luiz fontela em 20/04/2017
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