BONECA E BERTINA
BONECA E BERTINA (conto)
Sua pele de porcelana, seus olhos azuis, mais as sobrancelhas negras, longos cílios e cabelos prateados lhe renderam o apelido. Foi a dona do prostíbulo quem sugeriu. As outras meninas, entre risadas, concordaram: Boneca. E, com esse nome, ficou conhecida. Logo fez freguesia requintada. Solicitada por fazendeiros, comerciantes e políticos. Poderia ter feito fortuna, mas, tinha um grave defeito, incomum na sua profissão: era caridosa. Repartia o que ganhava com mendigos e alcoólatras. Também era, a seu modo, religiosa. Freqüentava a Tia Bertina, benzedeira famosa e paupérrima, que, em sua casa, uma cozinha com fogão de lenha sempre aceso, chão de terra batida, mais um minúsculo quartinho e uma privada no quintal, recebia, todos os dias, e durante o dia todo, pessoas de todas as camadas sociais. Por ali passavam bêbados, esfomeados, mães pedindo benzimento para filhos, políticos em caça de votos, doentes crônicos pedindo remédios caseiros, loucos, aleijados, enfim, uma variedade imensa de cidadãos e cidadãs da pequena cidade. Para todos sempre um cafezinho e quitandas, sempre quentinhos e mais um “Deus te abençoe”.
Tia Bertina contava que nasceu antes da abolição da escravatura. Ninguém sabia ao certo a sua idade, mas, por sua aparência enrugada, miúda, esquelética, sofrendo do mal de Parkson, calculava-se que estava entre os oitenta e noventa anos. Mas sempre sorridente, sempre alegre. Dizia, referindo-se ao seu trêmulo braço direito, que estava treinando para tocar viola. Também apreciava piadas e “causos” insinuantes, com pitadas de malícia. Ria de todos.
Boneca passou a ser o braço direito de Tia Bertina. Exercia à noite a sua profissão, mas era durante o dia que se realizava na sua verdadeira vocação. O que ganhava era destinado àquela alegre casa. Também arregaçava as mangas, fazendo limpeza, preparando almoço, coando café e assando broas e biscoitos. Também participava da hora da Ave-Maria, rezando o terço todas as tardes. Ali, encontrou felicidade.
***
Eu não tinha mais do que dez anos de idade. Época em que, com a meninada da rua, freqüentávamos o fundo do quintal de Tia Bertina, enorme e descampado. Ali, jogávamos futebol e fazíamos todos os tipos de brincadeira. Muitas vezes ela nos chamava para uma quitanda. Adorávamos. Ela nunca se incomodou. E, num desses lanches, vi pela primeira vez a Boneca. Foi paixão à primeira vista. Podem não acreditar, mas não vi só a moça, vi também a sua aura dourada-escarlate. A mesma aura que já havia visto em Tia Bertina. Depois vi a duas juntas e suas auras se fundindo. Eram como dois anjos brilhantes. Passei a ir todos os dias na casa, onde ficava com os freqüentadores em um dos três bancos da cozinha. Não falava nada, apenas admirava aquela beleza. Verdadeiro amor platônico, que nunca mais senti.
Mas... sempre tem um mas. Algum tempo depois, escutei meu pai dizendo para minha mãe: - Não quero que o menino vá mais na casa da Tia Bertina. Não é lugar de criança. Lá é casa de rapariga. Tem mulher-dama morando ali.
Lembro-me que, no dia seguinte, muito sem jeito e sem qualquer explicação, minha mãe foi taxativa: - Não quero que você vá lá! E não discuta!
É claro que não obedeci, mesmo porque o que é proibido é mais gostoso. Só que ia escondido. Mas não entendia o porquê da proibição.
Foi reunindo com a turma que descobri. Foi o Sérgio, o mais avançado de nós, quem contou: - ela é puta. – Já conhecíamos a palavra e o que ela significava, mas eu duvidei. Ele insistiu: - É lá da casa da luz vermelha. Quer apostar? – e despertou o interesse de todos. Fomos para lá e ficamos de vigia em frente. Escondidos atrás de uns arbustos. Logo a Boneca chegou. Chegaram também outras moças e homens de ternos. Aí os meninos passaram a contar estórias indecentes. A maior parte eu não entendia, mas, para não demonstrar ignorância, também ria e fazia cara de sabidão.
***
Uns dizem que foi o padre quem denunciou. Outros que foram os médicos. Pode ter sido qualquer um deles, pois tanto ao primeiro, quanto aos segundos, Tia Bertina fazia concorrência. O certo, mesmo depois de tantos anos, ninguém ficou sabendo. Infelizmente eu estava lá, quando chegou o delegado e mais um ordenança. As acusações eram muitas. Foram relatadas de forma amável, apenas com ameaças implícitas. O delegado falava como se fosse um conselheiro:
- Dona Albertina, a senhora tem dado remédios sem consulta médica. É verdade?
- Sim, para os pobres.
- Só que isso é crime... é charlatanismo.
- E essa moça da casa da luz vermelha? Passa o dia todo aí... corrompendo menores de idade... isso também é crime!
- Não, doutor, ela me ajuda... ajuda os pobres...
- Dona Albertina, a senhora sabe, ela é prostituta.
- Ela é uma alma boa. É um anjo.
- E teve um comunista aqui na sua casa. Estamos sabendo. Não é verdade que o Joaquim Pão-Frito está sempre aqui?
- É... é verdade... boa pessoa... sempre traz algum alimento para os meus pobres. Já trouxe até carne... gosto muito dele.
- Está se comprometendo, dona Albertina. Ele é um subversivo perigoso.
- Eu não sei o que é subversivo.
- Bem, dona Albertina. Eu não quero processar a senhora. Mas algumas coisas tem que mudar por aqui. Não dê mais remédios, procure saber sobre a vida de quem recebe e... você Boneca! Venha cá! Quero você fora daqui agora mesmo. Lugar de puta é na zona. Aqui não é o seu lugar. É minha última palavra... se tiver que voltar aqui, prendo todo mundo.
***
No dia seguinte a Boneca foi encontrada morta à beira de um riacho. A autópsia revelou suicídio por formicida. O mal de Parkson de Tia Bertina agravou. Não conseguiu mais sair da cama. Morreu em menos de um mês.
(a.l.fontela)