CAIPIRA

CAIPIRA

Era uma vez...

Não, meu caro leitor, não pense que se trata de um conto de fadas. Apesar da semelhança, a história é verdadeira. Eu, narrador onisciente e onipresente, juro. Quem a conheceu também jura. Faz parte da história da cidade.

Era uma vez uma menina magrinha, que veio da roça para a cidade do jogo, em companhia de seus pais.

Vamos voltar àquele tempo. A cidade era uma estância balneária, famosa não só por suas águas medicinais, mas, e principalmente, por abrigar os maiores e melhores cassinos do país. Tudo era luxo e ostentação. Shows com artistas de renome no cenário nacional e até mesmo astros internacionais. Fortunas eram ganhas ou perdidas em apenas uma mão no bacará, nos dados ou na roleta. A moeda corrente era a ficha, muito mais valiosa do que o mil-réis da época. E foi nesse ambiente que ela chegou. O pai abriu uma ferraria, o que possibilitava à família uma vida, se não confortável, pelo menos melhor do que na roça. Aqui a filha podia ir para a escola. Quando ficasse moça, poderia arranjar bom casamento. Bem, as coisas não acontecem como são planejadas. A menina cresceu, ficou bonita e foi para os cassinos. Se tornou prostituta. Diga-se mais: uma prostituta de luxo, procurada por deputados e senadores. Consta da história oral que foi amante de um governador conhecido por suas bebedeiras e até mesmo teve um caso com o Presidente da República. Sendo onisciente e onipresente, afirmo ser tudo verdade.

Ganhou chácara e casa na cidade. Também um automóvel, coisa rara na época. Muitas jóias. Ela usava todas e o dia todo, não apenas nos salões onde exercia com dignidade o seu ofício. Ia no açougue, na padaria, no mercado, na feira, toda enfeitada de balangandãs. Amava aquelas jóias, como se ama a um filho. Chegou a mandar incrustar um pequeno brilhante entre os dentes. Toda essa ostentação diurna lhe rendeu o apelido: Caipira. E passou a ser conhecida por esse nome. Por onde passava, a molecada gritava: Caipiiiiiiira! Caipiiiiiira! Ela não se importava, acenava com um sorriso.

Tudo ia bem na cidade das maravilhas, até que – tragédia – veio a ordem presidencial fechando o jogo em todo o país. A princípio, ninguém acreditou. Foi difícil encarar a nova realidade. Sumiram os milionários, os automóveis, os políticos e magistrados. A miséria rondando as portas. A nossa princesa Caipira foi obrigada a vender a chácara, depois o automóvel. Não podia se desfazer da casa, não teria para onde ir. Vender as jóias... jamais! Era como vender uma parte de seu corpo. A parte que mais amava. Um joalheiro aproveitador tentou fazer oferta. Respondeu: - vendo minha alma ao Diabo, mas não vendo as minhas jóias.

E vendeu mesmo. Invocou Lúcifer com todas as suas forças. Toda a casa tremeu com o ribombar dos trovões e chuva de raios. Água do céu descendo em cântaros. Satã aceitara a oferta.

Enquanto a cidade decaía, Caipira encontrava novas fontes de renda. Primeiro foi um tabelião, depois um fazendeiro, mais tarde um italiano industrial, todos de fortuna e idade avançada. Todos depenados aos poucos. Voltou a ter chácara, automóvel e mais jóias.

E o tempo passou... a menina envelhecia... aproximava-se a hora de saldar o seu débito.

- Não vou pagar! Vou vencer o Demônio!

Como vencer o Demônio? Como fazer um distrato de um contrato tão perfeito? Se recebeu, tinha que pagar. E ela havia recebido muito.

Venceu, primeiro, a si mesma. Vendeu chácara e automóvel, apurou o dinheiro e juntou todas as suas jóias. Embrulhou tudo em toalha de mesa e doou ao asilo de inválidos. Fez testamento deixando os bens que sobrara para a Santa Casa.

Ainda viveu muito. Mesmo sendo onisciente, não sei se conseguiu vencer o Demônio. Esta narrativa termina em seus dias terrenos. Sei que a cada dia ficava mais louca. Morreu dando facadas nas paredes e comendo lixo.

(a.l.fontela)

antonio luiz fontela
Enviado por antonio luiz fontela em 18/04/2017
Código do texto: T5973863
Classificação de conteúdo: seguro