Ao Bater das Caixas
Santa Devoção
Seis de setembro, dia em que não pude abandonar-me ao abandono. Como num susto estava aqui na praça que deixei há dezesseis anos. Pensava em como seria voltar. Não sabia como reagiria àquela situação absurda. O longo-largo jardim me inundava de flores, arbustos e bancos. E a Igreja no meio, diferente de todas depois conhecidas.
Os três mastros erguidos quinze dias antes estampavam os padroeiros: São Domingos, Santa Catarina, São Roque, Santa Ifigênia, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, os santos do rosário de Maria. Em cada um tremulava um estandarte com imagem de dois deles. Eram eles que abriam um corredor para o desfile dos congadeiros em frente à capela.
Os fogos estavam armados bem em frente do coreto. Quando se acendeu o pavio que girou a primeira roda de fogo, senti que estava em um ambiente mágico. Eram olhos arregalados e risadas de alvos dentes que, com o clarão das flores em luzes coloridas, davam a impressão de existir fogo vivo no rosto de todos os festantes. Eu sabia que quando o rastilho se propagasse para as outras rodas, girando ao contrário e em vários sentidos, ia haver muita admiração, muito assombro.
— Vá para Santo Antônio da Alegria, dance as congadas, carregue a bandeira. E fé, muita fé... Santa Ifigênia haverá de ajudar! — aconselhou vovó.
— Não lembra? É festa de rua. Você era pequena e gostava muito. — ainda ressoavam as palavras que tentavam me persuadir de que era a coisa certa a ser feita.
— Tem outros ternos, mas o “de Sainha” é o mais tradicional. Vou telefonar para Pedro, é o capitão atual; nosso primo, e vai aprovar. — Havia planejado todo o esquema, a confecção das roupas, coroa e enfeites. Toda animada se pôs a matracar, antes que eu pudesse retrucar:
— A coroa significa a Santíssima Trindade e homenageia a Princesa Isabel. Os vestidos são da época do império, foram encurtando com o tempo para mostrar o saiote, viraram a sainha. Rosa, a cor da alegria; as fitas coloridas cruzadas em xis na vestimenta simbolizam a felicidade dos escravos pela libertação e a paz. . Em dia de festa, com a pressa, fica difícil fixar estas faixas em volta da roupa. É emocionante como todos se ajudam colocando-as exatamente da maneira correta. — Por que fui desabafar com vovó? Deveria já saber que as soluções dela eram malucas. Não sabia se lhe dava atenção ou fugia dali, pois as explicações continuavam:
— Cada membro fica responsável por adornar o próprio capacete, do jeito que mais achar conveniente, respeitando sempre a hierarquia “Pai, Filho e Espírito Santo”. Bordam os chapéus com lantejoulas, mini-terços, gliter e pedrarias. Recomendam cuidado para não manchar ou rasgar qualquer peça. Não são fardas individuais, não é possível fazer peças sob medida, faltam recursos, por isso vou montar o conjunto para você.
Ah! promessas... E lá estava eu, num grupo com homens, mulheres e crianças, todos no figurino especial. Desde a manhã caminhava pelas ruas da cidade, passamos até pelo cemitério. Lá, o som das caixas cessou e em silêncio seguimos até o túmulo do fundador do terno, onde depositaram a bandeira; tocante o Canto das Almas:
Os fogos estavam armados bem em frente do coreto. Quando se acendeu o pavio que girou a primeira roda de fogo, senti que estava em um ambiente mágico. Eram olhos arregalados e risadas de alvos dentes que, com o clarão das flores em luzes coloridas, davam a impressão de existir fogo vivo no rosto de todos os festantes. Eu sabia que quando o rastilho se propagasse para as outras rodas, girando ao contrário e em vários sentidos, ia haver muita admiração, muito assombro.
— Vá para Santo Antônio da Alegria, dance as congadas, carregue a bandeira. E fé, muita fé... Santa Ifigênia haverá de ajudar! — aconselhou vovó.
— Não lembra? É festa de rua. Você era pequena e gostava muito. — ainda ressoavam as palavras que tentavam me persuadir de que era a coisa certa a ser feita.
— Tem outros ternos, mas o “de Sainha” é o mais tradicional. Vou telefonar para Pedro, é o capitão atual; nosso primo, e vai aprovar. — Havia planejado todo o esquema, a confecção das roupas, coroa e enfeites. Toda animada se pôs a matracar, antes que eu pudesse retrucar:
— A coroa significa a Santíssima Trindade e homenageia a Princesa Isabel. Os vestidos são da época do império, foram encurtando com o tempo para mostrar o saiote, viraram a sainha. Rosa, a cor da alegria; as fitas coloridas cruzadas em xis na vestimenta simbolizam a felicidade dos escravos pela libertação e a paz. . Em dia de festa, com a pressa, fica difícil fixar estas faixas em volta da roupa. É emocionante como todos se ajudam colocando-as exatamente da maneira correta. — Por que fui desabafar com vovó? Deveria já saber que as soluções dela eram malucas. Não sabia se lhe dava atenção ou fugia dali, pois as explicações continuavam:
— Cada membro fica responsável por adornar o próprio capacete, do jeito que mais achar conveniente, respeitando sempre a hierarquia “Pai, Filho e Espírito Santo”. Bordam os chapéus com lantejoulas, mini-terços, gliter e pedrarias. Recomendam cuidado para não manchar ou rasgar qualquer peça. Não são fardas individuais, não é possível fazer peças sob medida, faltam recursos, por isso vou montar o conjunto para você.
Ah! promessas... E lá estava eu, num grupo com homens, mulheres e crianças, todos no figurino especial. Desde a manhã caminhava pelas ruas da cidade, passamos até pelo cemitério. Lá, o som das caixas cessou e em silêncio seguimos até o túmulo do fundador do terno, onde depositaram a bandeira; tocante o Canto das Almas:
“Eu andava perambulando
sem ter nada pra comer,
Fui pedir às almas santas
para vir me socorrer...”
sem ter nada pra comer,
Fui pedir às almas santas
para vir me socorrer...”
Com aquela andança o apetite despertou. Que delícia de almoço! “Sempre os mesmos pratos?” — perguntei à festeira. Ela respondeu que na cidade são muitas as pessoas que alcançam graças e que em troca oferecem refeições aos ternos como paga. Promessas...
— A comida é para além dos integrantes do terno, para todos que comparecerem aqui. Vale pelo canto de agradecimento:
“Deus te salve mesa farta,
Neste sagrado momento,
É aqui que encontramos,
A comida pro nosso sustento,
São Benedito abençoa quem preparou este alimento...”
Neste sagrado momento,
É aqui que encontramos,
A comida pro nosso sustento,
São Benedito abençoa quem preparou este alimento...”
A mulher ainda esmiuçou que havia também os "guardadores da bandeira", famílias que juramentam guardar a bandeira quando termina a festa até começar a próxima do ano seguinte, responsabilidade passada de pai para filho.
— Todos da cidade levam cada ato muito a sério, pois somos roceiros, precisamos da chuva... Se ao bater das caixas do Congo, a chuva não vier, teremos ano de miséria...
Faltava pouco... O sol morria um pouco, a fadiga diminuía quando divisava a recompensa; sentia-me arrastada pelas ondas dos cantos. Era somente enfrentar o cortejo na praça e, depois da missa, a procissão. A “boa velhinha” me convenceu a carregar o andor de São Benedito, que, na tarde anterior já havia ajudado a decorar com galões e flores naturais. Quantas instruções!
Endureciam-me os músculos, contraíam-se os nervos... Dores me fustigavam, coisa indistinta. Eu me apertava e me segurava. Tinha que fazer aquilo. Poderia fechar os olhos por uns momentos? Cansaço doído, sol queimante, mas a causa era merecedora de tamanho sacrifício. Pior se vovó tivesse prometido que eu viesse descalça, acorrentada; vestida de anjo até poderia ser...
Cada passo distraía um pouco, mas tudo somado era nada. Pensei: vou descansar dez minutos; fixei-os no relógio e comecei a inventar coisas, imagens-relâmpago passando pela cabeça, fugas por terras mal sonhadas.
Ao pôr do sol, por um instante o estado de separação é esquecido. A multidão aglomerava. Os olhos de Carlos me devoravam; o coração sabia tudo, mas não se abria. Foi complicado fazê-lo entender a situação. Não podia contar-lhe que ele era a causa da promessa. Meu namorado não me acenava um futuro, não se decidia a romper com a noiva, não gostava mais dela, não havia mais empolgação; nós estávamos apaixonados, trabalhávamos juntos e vivíamos uma relação intensa. Confidenciei com vovó e tudo desembocou aqui. Ah! promessas...
Voltei ao relógio, ele dizia que o tempo passara muito pouco, mas ele correu rápido pelos cantos de meus olhos, enchendo-os de tambores franjas e cores: Rei e Rainha do Congo prosseguiam em procissão até a Igreja do Rosário, onde seriam coroados pelo vigário. O apito do capitão puxou o fole da sanfona, a magia aconteceu... as caixas marcavam o ritmo acompanhadas por pandeiro, violão, tamborim, repique, e timbal. O bailado recomeçava, a energia envolvia os presentes. Eram cantos de fé, cheios de luzes e imagens:
“Eu agora vou saudar,
Com prazer e alegria,
Vou saudar as seis imagens,
Do Rosário de Maria!”
Com prazer e alegria,
Vou saudar as seis imagens,
Do Rosário de Maria!”
Eu rebolava com a capa florida amarrada às costas, balançante a cada pulo e coreografia com a espada. Saber que Carlos me observava, devolveu-me o vigor. As rodas girando em vários sentidos com cores diversas, e jogando luminosas e coloridas faíscas para todos os lados, estabeleciam um pasmo geral no povo. Era o “dançar trocado” que tanto ensaiara com minha velhota, enquanto ela retratava cada detalhe:
— Vá sem medo! Quem ama está mais perto do divino. Sempre que dança, canta, toca música, vive a religião de verdade. Faça parte de um dos grupos: Congos de Cima com Fidalgos e Rei, os cristãos. Congos de Baixo ou do Embaixador, os pagãos, mouros, infiéis. Cada um tem o seu papel, é só representação, pode escolher a sua companhia. Você possui a pureza de coração necessária!
Carlos se colocara no melhor lugar para assistir à dança e reza; continuava com os olhos fixos em mim, esquecido do cordão de brincantes ou do lundum iniciado pela Rainha do Congo, a negra imensa e gorda que parecia ainda maior com as saias rodadas e os colares enrolando e cobrindo as gorduras do pescoço. Carregava uma coroa dourada e prateada na cabeça e na mão, um cetro cheio de fitas que usava para chamar os cavalheiros escolhidos.
“A bandeira vem de longe pra saudar essa morada
Viva o cravo viva a rosa viva o rei desta congada
Minha Virgem do Rosário hoje chegou o nosso dia
Deus permita que nós cheguemos todos juntos na portilha”
Viva o cravo viva a rosa viva o rei desta congada
Minha Virgem do Rosário hoje chegou o nosso dia
Deus permita que nós cheguemos todos juntos na portilha”
A esperança e o amor me arrebatavam e eu repicava os passos com energia, no ritmo certo dos tambores e atabaques. Evitava bailar igual ou repetido, mais afoita e ligeira, inventava novo passo dentro naquela mesma marcação. Saltos, voltas e bamboleios, girava para ele, desejava encantá-lo e dominar a cadência no gingar das pernas e cotovelos, misturar-me no ferver da dança e esquecer a canseira. Estava solta na dança, livre aos olhos que chispavam de malícia. Era um movimento desgarrado, balançava, mexia e remexia sem perder o compasso.
“O galo do céu cantou
Todo mundo respondeu
A estrela anunciou
Que nasceu o Menino-Deus”
Todo mundo respondeu
A estrela anunciou
Que nasceu o Menino-Deus”
Quando dei por mim, tinha perdido o tempo, o tino, as distâncias e até o chão que pisava já sem rumo. Não havia confusão ou certeza. Foi assim: um gesto, duas mãos convergindo; Carlos me puxou, agarrando e envolvendo-me como a noite e me guiou para onde senti a quentura dele nos braços, nos seios, e nas coxas. A música seguia no distante...
”Viva o cravo viva a rosa
Viva o rei desta congada
Meu senhor dono da casa
Mostra a sua devoção
Receba são Benedito
E os congos de pé no chão
Oi lai ô le rarai”
Viva o rei desta congada
Meu senhor dono da casa
Mostra a sua devoção
Receba são Benedito
E os congos de pé no chão
Oi lai ô le rarai”
Já era maio. O tempo passava rápido, muitos eram os preparativos. O casamento seria um acontecimento de gala: convites, bufê, padrinhos, damas, convidados, flores, muitas flores. Tudo organizado.
Dia do júbilo. O meu vestido era rico em tecido, véu sobre o rosto e cauda longa. O buquê era de flores raras com miolo de estrasse. Chorei no altar ao lado do noivo. A palavra de Deus foi anunciada. O padre, amigável, indicou o púlpito para a vovó que fez a primeira leitura, sobre o amor que Paulo apregoara aos Coríntios 1.13. No dia seguinte, com o coração cheio deste mesmo amor, ela viajaria, transbordando em lágrimas, para dar início a outra missão.
No final da cerimônia, saímos através de um corredor imenso de convidados. Os carros entraram por uma estradinha vicinal, percorrendo campos, arvoredos. Era uma cena de filme... O salão ricamente decorado, a comida farta, a música, os cumprimentos e abraços com desejos de felicidades.
— Eu não disse que daria certo?! Não tem como escapar do milagre das Congadas! Agora Carlos é todo seu! — vovó abraçou-me de forma triunfal — Vou continuar rezando por vocês. Nunca deixe de se maravilhar para que os mistérios se desvendem para você. Eu fiz a promessa e você a cumpriu, trabalhou duro.
Meu marido jogou para os amigos solteiros as ligas de rendas que ele elegantemente retirara de minhas pernas, e eu joguei o lindo buquê de flores com pedrinhas de estrasse, que, como por encanto caiu no colo de vovó.
Era o destino gritando outra vez. A boa velhinha presentearia Santa Ifigênia com o brilhante ramalhete. Nada mais justo.