Um velho e simpático senhor
Nasceu no final do século XIX. A Inglaterra, local onde veio à vida, gozava de alguns privilégios oriundos da Revolução Industrial, mas sofria perdas irreparáveis nas relações humanas e, principalmente, trabalhistas. Cresceu entre fábricas e operários e aristocratas britânicos. Tornava-se relativamente famoso quando conhecera um estudante brasileiro filho de ingleses. O jovem morava no país que ainda dava mostras de ser rural, agrário, preconceituoso, mas que se portava com altivez, como a Rainha de Copas. Convenceu-o a acompanhá-lo, desejava apresentar o mais novo conhecido ao seu povo tão castigado pelas mazelas.
Poucos acreditaram quando ele chegou o Brasil. Ainda muito jovem, meteu-se com as elites nacionais logo de cara, mas não se manteve apegado a elas durante muito tempo. Descobriu-se do povo, e o povo começou a se entregar a ele. Aclamado, ganhou status e agremiações passaram a se dedicar exclusivamente aos excentrismos exigidos por aquele rapaz ao mesmo tempo marrento e apaixonante. Excêntricos, por outro lado, tornaram-se os outros, aqueles dedicados ao mar, às quadras ou aos cavalos. Pela primeira vez, a sociedade pobre, mulata e latina ganhava algo para chamar de seu, enquanto as elites continuavam engajadas na missão de se equiparar aos colonizadores.
Ele, radicado na grama, continuava a ganhar terreno entre os mais jovens e - quem diria - entre os mais pobres. Sem seu consentimento, ávidos aristocratas exigiam estirpe para permitir aos nativos chegarem a ele. Cobravam atestados de riqueza e certidões de distinção social em uma nação cuja população era predominantemente analfabeta. O brasileiro padrão, acostumado a transformar revezes em vitórias apenas com criatividade e suor, conheceu-o na clandestinidade, nas ruas cobertas por despojos humanos, nas praias periféricas das grandes cidades. Logo ele percebeu que aqueles brancos desajeitados de sobrenomes europeus não representavam o país rapidamente escolhido por ele para deixar seu maior legado.
Sentiu seu coração “abrasileirando” quando deixava os salões dos clubes sociais para, na rua, aproveitar do calor e da admiração do povo brasileiro por ele, e dele pelo povo brasileiro. Os caboclos, mulatos e mestiços da República das Bananas aproveitavam o que de melhor ele tinha, sem ligar para os ternos, vestidos, sapatos e cartolas tão cobiçados pela elite local. Recusavam as regras de vestimenta simplesmente por não possuírem condições de comprar roupas de luxo, ou pelo menos dignas de inveja entre os iguais. Preocupavam-lhes os trocados para comprar o pão de cada dia, não a nacionalidade de um tecido ou de um acessório qualquer.
Não havia interesses, apenas estavam com ele pela diversão proporcionada por aquele inglês cada vez mais sul-americano. Não necessitou exigir a entrada desses incultos e semibárbaros em seu ciclo social. Era clara e evidente a leveza de seu ser na presença desses cidadãos. Os desdentados que nem sabiam escrever os próprios nomes o cativaram, e não houve quem pudesse separá-lo deles. Até hoje alguns ortodoxos lutam para desmerecer essa relação simbiótica, mas, juntos, eles ganharam o mundo.
Na metade do século XX, a primeira prova de amor incondicional. A despeito da necessidade de investimento em outras áreas, o país ergueu um imponente monumento ao então jovem senhor. Intencionalmente ou não, o Brasil se igualou à Roma dos gladiadores. O coliseu tupiniquim resistiu ao peso das duzentas mil pessoas, abarrotadas e ansiosas pelo desfecho ideal da primeira oportunidade global para o anúncio definitivo da parceria. Foi a maior aglomeração já vista por ele, mas nem por isso houve sorrisos ao final. Fazendo justiça, onze jogadores e uma população pequena o suficiente para caber, por inteira, nas arquibancadas daquela megalomania de concreto sorriram. Não há provas quanto a isso, mas especula-se um choro inconsolável da parte dele. Sabe-se concretamente que aquele povo todo foi às lágrimas numa depressão coletiva comparável às grandes guerras e perdas irreparáveis.
Não teve culpa no incidente, mas alguns invejosos afirmam ter o remorso sentido por ele desde então colaborado para a dinastia surgida naquele país de terceiro mundo. Alguns mais adeptos de teorias conspiratórias acusam irregularidades na água distribuída à população, pois acreditam ter sido adulterada por ele na tentativa de reparação pela tragédia. Assim, para cada cidadão europeu digno de seu ciclo íntimo, dos grandes, nascem de vinte a trinta brasileiros postulantes ao seu abraço fraternal. Outros acusam-no de favorecimento em encontros internacionais, nos quais o julgam extremamente parcial e tendencioso em favor dos brasileiros.
De fato, mesmo internacionalizado e querido em todos os cantos do mundo, continuou a se cercar daquele povo pelo qual se apaixonou. Deu cinco glórias maiores ao país adotado como seu, além de diversas conquistas periféricas e honrarias nos diversos cantos do mundo. Sem muitos motivos para comemorar longe do inglês, a nação brasileira se apegou cada vez mais a ele. Construíram uma relação tão forte quanto o senso de pátria no país de Macunaíma e Policarpo Quaresma. Ainda hoje, a despeito do currículo invejável da parceria, tentam deturpar seus ensinamentos e restringir novamente às elites a convivência e amizade dele. Poucos sabem, mas, de tanto ser maltratado e contrariado por aqui, zarpou em uma aventura para espairecer um pouco. Conhecendo-o, é possível afirmar que ele saiu para gerar uma outra revolução, em um outro país.
Hoje, apresenta-se como um senhor inglês naturalizado brasileiro. Tão adaptado ao Brasil que, atualmente, um é sinônimo do outro. Aqui, encontrou seguidores, fãs, apaixonados e fanáticos. Devotos inclinados à morte, se necessário, acompanham todos seus movimentos. Milhões morreriam pela sua sobrevivência e perpetuação, e essa é a maior honraria que ele poderia receber. O seu maior legado.