De coração, amor e sonho

Do lado de fora alguns pingos de orvalho pousados sobre a janela do trem e a avenida paralela mostrando que era sexta-feira. O trânsito correndo concomitante aos pensamentos que, ora pousavam sobre o conteúdo de uma das disciplinas do curso de Direito, ora para o celular com os dedos ágeis em responder mensagem instantânea. Primeira graduação. Por vezes se pergunta se há algo errado com o mundo, ou se consigo mesma. Pensara em fazer letras, talvez biologia entre tantas opções. Mas há um tanto de obstinação em seu âmago que a fez decidir de vez por esse curso. O trem lotado. “Meu Deus, como o transporte é insuficiente? Ou será precário, numa cidade com o porte dessa megalópode sul-americana?” Pensa um tanto relapsa e ao mesmo tempo com um breve sentimento de revolta, voltando os olhos pra o celular: “vou me atrasar”. “O tempo é quem nos escraviza, talvez o mundo fosse melhor feito de apenas poesia, ou ficção, já que é uma ficção construída para nos enganar, para fazer com que sejamos todos apenas bonecos manipuláveis”.

Nathalia tem um escorpião cravado dentro do seu coração e o veneno desse, que mataria qualquer outro ser do planeta, apenas a alimenta e a mantém com a tez serena. É onde consegue se desvencilhar de sua alma de águia para poder pisar o chão que, para si, é um imenso bloco de gelo que pode escorregar ou trincar a qualquer momento, fazendo com que caia de sua convicção. “Queria mais amor, menos liquidez no chão, talvez apenas ar para voar e conquistar num único arquétipo, a liberdade para a vida”.

Depois da aula, corre direto para o trabalho onde tem expediente no setor jurídico de um grande banco. Aprende que a vida é mais burocrática do que prática. Pensa que tudo poderia ser mais simples. Mas a sociedade se subdivide em repartições, em esferas políticas, em camadas sociais, em poderes, na fragmentação das atividades, no esfacelamento dos direitos essenciais. Na calçada, a multidão de gente, corre como correm as formigas de um lado a outro, procurando pela razão primordial de ser, de trabalhar, de ter, de consumir. Uma rosa vermelha nas mãos de uma criança no farol fechado, do outro lado da rua, a deixa comovida. Passa as mãos nos lábios, o batom carmim combinando com a blusinha de gola e botão na mesma tonalidade rubra de seus olhos se esforçando para não derramar uma gota que fugisse de seus transbordamentos. Escondia que acreditava no amor quase com desconfiança para a maioria de seus convivas. Talvez para não parecer tão utópica. Ou por mero resguardo. O coração batendo forte. O veneno do escorpião fazendo seu ar desejar explodir dentro dos pulmões. Um avião rastejando o cume de alguns edifícios na iminência do pouso. Novamente a águia resgata-lhe do chão e a transfere para outra realidade. Enxerga montanhas onde, entre seus vales, há um pequeno país onde todos possuem os mesmos direitos, onde todos trabalham em prol de um bem comum e não há nem pobre e nem rico. Apenas senhores donos de seus destinos.

Em casa dedilha uma música nova que está aprendendo. Sussurra uma canção com sua voz suave e leve. Pensa que todos os artistas são livres. Os que fazem sucesso talvez nem tanto, estão vendidos para o sistema. Mas os anônimos, os poetas livres, as bailarinas, os palhaços, pessoas caracterizadas de estátuas vivas que ficam inertes nos grandes centros. É tarde já. Desfalece sobre a cama no meio de uma conversa virtual.

Depois do diploma, torna-se profissional autônoma com foco em trabalhar em prol da sociedade. Defender os menos favorecidos. Mas o estudo não para e faz pós graduação. Não é tão fácil trabalhar com a incerteza de um rendimento fixo. Talvez siga carreira de servidor público. Mas as vagas estão cada vez mais escassas, pois o país atravessa uma grande fase de recessão com a progressão de frentes direitistas no cerne de todas as células governamentais. A iniciativa privada com seus tentáculos cada vez mais gigantes, abarca todas as empresas que dão lucro imediato. O povo sofre. Nathalia se entrega incansável numa mesa com um computador. Cada vez que o mundo fica mais inóspito, ela, cheia de azáfama, se depara com o cerceamento de tudo que lhe permite acreditar numa saída mais profícua para a humanidade e transforma isso em letras de seu alfabeto de possibilidades: a escrita. Torna se escritora e, entre a turbulência do dia a dia, o amor acontece com a mesma tonalidade preferida de sua vida: vermelho. Seu coração se divide entre a leveza do toque de lábios e o apego com a arte maior onde seus olhos em redor, tudo capta. Onde colhe todos os espinhos para tatuar em sua pele a delgada cor do cotidiano. Nathalia não é vermelha por engano, é por paixão, e por paixão vive cada dia entre as aspas de um contraste urbano. Não é de plástico, nem de pano. É feita de coração, amor é sonho.