A Subversiva História de Tonho Grampeador
Erigiu para si um castelo de carimbos e papéis timbrados. Tornou-se poderoso.
Ao romper da alva a turba depara com o mamútico edifício e não pode evitar um bramido de espanto. Compreende, enfim, que o Excelente, o Venerável entre os Veneráveis, está de volta. Eis aquele que possui o Papel e o Carimbo, tendes para com ele a dívida da obediência.
E, passando do pensar ao agir, em uníssono se dobram os joelhos, os rostos se dirigem para o solo e as reverências se prolongam até o sol poente se cansar de encompridar as sombras para o Leste e deixar cair a noite. E todos os corações estão prontos para o que ordenar o Excelente.
O Excelente cercou-se de funcionários competentes, selecionados entre os mais nobres e impolutos. Nomeou-os para diversas funções: para grampeadores, clipes, furadores de papel, arquivos suspensos, papel-ofício, papel-cópia, papelisso, papelaquilo, livro de registo e de registro, à vontade do freguês... Houve mesmo aqueles que teriam por função serem máquinas de escrever ou calcular (calculem só), a honra das honras, a mais subida delas, o que ocasionou desmaios e não poucas crises de histerismo entre os poucos escolhidos.
Mas, à parte isso, nenhum outro distúrbio ocorreu durante o período de nomeações e posses, o que nada mais fez que comprovar a sabedoria com que foram feitas e encaminhadas. E a partir daquela data se poderia esperar uma sociedade, se não perfeita, pelo menos quase, pois nada é perfeito neste mundo.
Nada é perfeito neste mundo. Cada organismo tem o corpo estranho que lhe apetece.
Tonho Grampeador, um dia, descobre um carimbo, se apossa do dito cujo, porém não se sente nem um pouquinho mais poderoso ou superior aos outros. Começam a cantar em sua cabeça os grilos da insensatez.
- Também onde foi ele arranjar essa de carimbo não dar poder? Isso é uma heresia, além de chegar aos limites da estupidez. A sociedade tem que ter escadas, carimbo é um dos degraus.
A população tem sempre uma contribuição a mais a qualquer problema:
- Então o Tonho não quer ser mais grampeador!... Vai ver que ele nos acha repelentes. E logo ele, cujo pai não passou de um clipe dos mais ordinários!...
- É a juventude, sô Dair! Tem sangue demais nas veias! Espera, que passa.
- Fogueira! Fogueira! Fogueira!
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A insensatez é como muito ar numa bola de futebol: chega um ponto em que a infeliz não suporta e estoura sem notícia nem aviso. Tal é a estória de Tonho Grampeador. A primeira vez, só um sussurro ao se apossar do carimbo e não virar nenhum super-homem.
- Bom o carimbo não faz o rei!
A segunda e a terceira só conversa medida, mas, na quarta vez, explodiu em plena praça principal e deu de si com a frase já consumada, em urro de leão:
- BOM, O CARIMBO NÃO FAZ O REI!
Bem feito, Tonho hoje está na cadeia. Sua prisão é uma gaveta de armário de aço, aliás, bastante funcional, que vive sempre trancada. Talvez, no futuro, sua pena de prisão perpétua possa ser comutada e transformada em exílio num depósito de lixo com espaço disponível ou mesmo na suprema desonra de ser posto à venda em algum bricabraque ordinário. Em todo caso, sua função de grampeador jamais poderá ser recuperada, nem mesmo os clipes o aceitarão como companheiro, Tonho está afastado de qualquer convívio social sadio. Bem feito!
Enquanto isso, assestado a seu assento de papel-ofício, rodeado de soberbas pinturas a óleo de ilustres máquinas de escrever e calcular, esculturas representando os mais variados modelos de grampeadores e prendedores de papel, sorridente, sábio e generoso, aí está o Excelente. Neste exato instante, encontra-se testando novos modelos de carimbo, sempre cercado de seus amáveis, humildes e impolutos colaboradores, tudo lhe fazendo para que a vida lhe saiba mais doce e que os ruídos da inquietude jamais se avizinhem de seus sublimes ouvidos. O Excelente merece.
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Está tudo certo, mas ninguém tem pena de Tonho Grampeador?
(Jeddah, Arábia Saudita/08/1975)