O ANTISSOCIAL
Quando o dia amanheceu,Marcos estava sentado em sua cama. Nem se lembrava de quando tinha desistido de dormir. Odiava as terças-feiras e o efeito sempre era esse: a ansiedade começava a bater-lhe a porta pouco depois do jantar,ficando mais forte por volta das dez da noite e tomando conta de sua mente quando as luzes eram apagadas em seu quarto. Numa manhã como essa,já teria se apossado de todo o seu corpo.
As unhas corroídas,os olhos inchados,o cabelo bagunçado,o coração descompassado e a respiração pesada já não lhe eram mais surpresa,apesar de ainda não conseguir lidar com tudo isso. O estômago fervilhava e recusou o café quente. O intestino parecia uma esteira de linha de produção,trabalhando à todo vapor e empurrando o refugo para fora. Marcos foi ao banheiro e lá,sentado na cadeira dos pensamentos,teve tempo de analisar o que estava acontecendo e tentar se acalmar.
Nada feito. No silêncio dos azulejos,podia ouvir os ponteiros do relógio conduzindo-o para o futuro que queria evitar. Olhou-se no espelho,contemplando com tristeza os cabelos escassos,apesar da pouca idade. Teria de usar um boné. O corpo magro talvez fosse disfarçado usando uma boa blusa. Por sorte fazia frio. E os óculos? Ficariam na gaveta.
Voltou para a cama,esperando a hora chegar como um condenado aguarda na cela o momento em que o carrasco o levará para a forca. A mente parecia um redemoinho,misturando todo tipo de pensamento numa salada psicótica. Tremia e não conseguiria acender um cigarro,caso fumasse. A garganta implorava por água e foi difícil manter o copo na boca sem derramar nada.
À essa altura,não conseguia mais ficar sentado. Precisa andar,mover as pernas,fazer o sangue circular. Deve ter andado alguns quilômetros na cozinha até que ouviu o som,aquele maldito som,se aproximando. Seu ouvido treinado calculou quanto tempo ainda tinha: pouco.
Foi até o portão,um daqueles em que não se vê um centímetro do outro lado,e parou com a mão no ar,trêmula,segurando a chave. Ainda não estava pronto. Voltou correndo ao banheiro,jogou água no rosto,olhou seu reflexo no espelho e tentou se encorajar. Não adiantou. E o som só aumentava,pressionando sua cabeça como um rolo compressor.
Quase voando,voltou ao portão,colocou a chave na fechadura mas não a girou. Respirou fundo,de novo e de novo. Agora o som era acompanhado por vozes. Estavam perto.
Abriu o portão,apenas o suficiente para espiar a rua acima. Eles deviam estar à cem metros. Ótimo. Ninguém mais à vista. Abaixou-se,pegou o saco de lixo e colocou-o na calçada como se houvesse produto radioativo quentinho de Chernobyl ali dentro. Fechou o portão numa pancada que balançou a casa.
Encostado na parede,sentiu o alívio circulando nas veias como um entorpecente,o coração voltando ao normal e os nervos se controlando. Quando os lixeiros passaram na sua habitual correria,recolhendo seu lixo ali,há dois metros do outro lado do portão,Marcos sentiu-se como um soldado com seu dever cumprido. O caminhão foi embora,levando consigo o som.
De volta à cama,o descanso merecido era sua recompensa. Terminara a tarefa sem precisar encarar nenhum outro ser humano. Sorrindo,pegou o celular,feliz por estar em casa.