1003-ISTÓRIA REAL DE GRANDES AMIGOS -Vovó Bia Conta

Noite quente na Fazenda Palmital. Após o jantar, todos estão sentados no longo alpendre da casa de morada: Tia Elvira, Tio Alpineu e Vovô Aníbal conversam em uma extremidade enquanto vovó Beatriz está sentada em sua confortável cadeira de vime, no outro lado. As crianças — Dorinha, Tavinho e Carlinhos — brincam próximos à avó e num dado momento, — talvez já cansados das brincadeiras, — chegam perto dela e pedem quase que em coro:

— Vovó, conta uma história, conta!

Vovó se remexe, voltando de um breve devaneio.

— Uma história... mais uma história! Deixe-me ver.

Fecha os olhos novamente e as crianças pensam que ela voltou a cochilar.

— Vovó, Vovó! Uma historinha só. — Diz Dorinha, dengosa.

— É, pode ser bem pequenina. — Fala Otavio.

Abrindo os olhos, agora bem atenta aos clamores dos netos, responde:

— Ah, bom. Uma historinha bem pequena.

E começou:

Vou contar uma história de verdade, acontecida com pessoas que vocês conhecem.

— Puxa, vai ser legal! — Diz Carlinhos.

Ajeitando alonga saia e cruzando os pés calçados em chinelas forrados e muito confortáveis, ela começa:

— Vocês conhecem nossos vizinhos Nicolau e Pedro, não conhecem?

— Sim. — Dorinha respondeu. — São aqueles dois sitiantes que moram ali do outro lado do rio. Nós nadamos ali no poço com os meninos de lá, Neca, Dito e Lilico, filhos do seu Nicolau.

— Pois é, eles mesmos. Eles são muito amigos, parecem que são irmãos, de tão amigos que são. É uma amizade que vem da infância. Amizade que dura a vida inteira. Cresceram juntos e depois que os pais morreram, eles ficaram morando nos sítios que herdaram. . Sempre amigos. A única diferença é que seu Nicolau casou-se e tem os três filhos, e seu Pedro não se casou.

— É solteirão, comentou Carlinhos.

— Eu pensei que eles eram irmãos, disse Dorinha.

— É como se fossem. Mas não são, não. São trabalhadores e costumam até fazer as mesmas coisas. Por exemplo, todos os anos eles plantam milho ali na barranca do rio. Cada um planta sua área, uma igual a outra, e por isso, colhem quantidades iguais e negociam na cooperativa e têm lucros iguais.

Vivem modestamente, pois os sítios são pequenos, e tem a mesma extensão. Teve um período de dois anos, acho que foi a uns dez anos, que o tempo foi muito ruim para as lavouras. Choveu pouco. A colheita de milho (que é a fonte de renda dos dois) foi pequena. Eles passaram dificuldades, mas não desanimaram. Um ajudava o outro e foram tocando prá frente.

Depois, veio um ano bom, chuva na hora certa, e eles colheram muito, muito mesmo. Estocaram as sacas nos seus galpões e ainda ficou algumas empilhadas fora do s galpões, que tiveram de ser protegidas com enormes plásticos para não molhar caso chovesse, enquanto não levavam para a cidade.

:

— Então aconteceu uma coisa bonita. Quem me contou foi seu Nicolau.

Vovó fez uma pausa e disse:

— Tavinho, vai à cozinha e me traz um copo d água

Enquanto Tavinho foi e voltou, Dorinha e Carlinhos ficaram inquietos, ansiosos com o desenrolar da história. Vovó tomou a água com satisfação e perguntou:

— Onde é mesmo que eu estava?

— Seu Nicolau contou que ...

— Ah, sim, já me lembro.

E retomou o fio da história.

Naquela noite, após a lida do dia, seu Pedro, deitado, cansado, olhou para dona Cidinha, sua mulher, e pensou:

— "Eu sou casado, tenho filhos bons, uma companheira fiel e cúmplice. Eles me ajudarão no fim da minha vida. O meu amigo é sozinho, não se casou, nunca terá um braço forte a apoiá-lo. Com certeza, vai precisar muito mais do dinheiro da colheita do que eu".

Levantou-se silencioso para não acordar a esposa nem as crianças, aparelhou a junta de cavalos no carroção que encheu com os sacos de milho que estavam fora do galpão.

E lá foi na direção da casa do amigo Pedro.

E aconteceu que o seu Pedro, apesar de cansado da lida do dia, não conseguia dormir. Deitado em sua cama, pensou:

"Para que preciso de tanto dinheiro que vou receber com a venda do milho, se não tenho ninguém para sustentar? Já estou idoso para ter filhos e não penso mais em me casar. As minhas necessidades são muito menores do que as do seu Nicolau com uma família numerosa para manter".

Não teve dúvidas, pulou da cama, encheu a sua carroça com a metade do produto da boa terra e saiu pela madrugada fria, dirigindo-se à casa do outro. O entusiasmo era tanto que não dava para esperar o amanhecer.

E então, na madrugada ainda escura daquela noite de outono os dois amigos se encontraram na estrada que ia de um sitio ao outro.

Olharam-se espantados.

— Uai, cumpadre Pedro, eu ia justamente...

— Num precisa dizer nada, cumpadre Nicolau. Eu também...

Não foi preciso mais palavras. Os dois amigos se abraçaram e compreenderam que a amizade deles era tão grande que eles nem precisavam de palavras para se entenderem.

Vovó Bia se calou, dando a história por terminada.

— Puxa vida, isso é que é amizade! — Exclamou Dorinha. — Pois é. A gente pensa que histórias bonitas só acontecem longe da gente ou estão apenas nos livros. — disse vovó Bia. E concluiu

— Bom, agora vamos aprontar para dormir, que já está ficando tarde.

Os meninos e a garota correram prá dentro de casa, enquanto vovó, com os passos leves e curtos, os seguiu.

Mais uma noite de encantamento desceu sobre a fazenda Palmital.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 18 de março de 2017.

Conto 1.003 da Série MAIS 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/03/2017
Código do texto: T5953545
Classificação de conteúdo: seguro