UM ROSTO NA ESCURIDÃO - TEXTO COMPLETO

PARTE I

Os sinos badalaram e anunciavam o dia festivo na cidade. Era assim que a população de Águas Claras se comunicava. Os mais jovens ainda se perdem repetindo os sons e tentando codificar enquanto que os mais velhos já sabem até o sexo do falecido quando os sinos tocam as fúnebres badaladas.

Ela saiu de casa pela primeira vez com o rosto descoberto. Sua pele pálida, de pouco ver o sol parecia refletir uma luz nos olhos da população curiosa da cidade que fitavam o rosto de Eugênia, a menina que era envolvida por uma aura de mistério. Ela saía às ruas somente para ir à igreja, sempre na sua liteira e o rosto sempre coberto. Sem mãe, o pai deixava a menina aos cuidados da tia Antônia, irmã mais jovem do homem que controlava a vida na cidade. Esta, porém, ausente sempre, quase não ia ver a menina que estava sendo na verdade cuidada por sua mucama, que vira a menina nascer e lhe cortou o cordão umbilical. Foi a primeira a ouvir o choro da criança e naquele momento, sentiu grande afeto, lembrando ela própria de sua menina, que nasceu e sobreviveu três dias apenas. Estêvão era dono da maior parte das terras e minerava e plantava. Era forte, rosto carrancudo e voz rouca. Impunha-se pela sua presença, simplesmente.

A jovem estava se curando de uma grave doença. Mas ainda tinha um longo caminho a percorrer. Era cuidada por Adolfo, médico idoso, prático, conhecido da família há anos. Cuidava de uma disfunção renal que quase matara a menina. Sempre fraca, ficava a maior parte do tempo em seu quarto, que do lado leste, não tomava o sol da tarde e estava sempre frio. Paulo era seu noivo. Era o único a ver o rosto de Eugênia, sempre na penumbra da casa que vivia de janelas fechadas por orientação médica. Mas se via uma silhueta de formosura à luz daquelas velas. O pai de Paulo era o melhor amigo de Estêvão, e ao nascer, a menina foi prometida ao seu filho que já contava com doze anos de idade.

Era o ano em que a menina completava quinze anos. As badaladas eram pela presença do bispo que faria a celebração da crisma nos jovens da cidade. Eugênia estava eufórica por dentro, mas tímida se mostrava assim vez primeira com o rosto à vista de todos. Ela se comprimia ao fundo da liteira tentando não ser alvo da curiosidade alheia. Muitos jovenzinhos seguiam-na, para ver seu desembarque na porta da igreja e matar a curiosidade em contemplar o rosto mais desconhecido da vila.

Era o dia vinte e dois de setembro de mil setecentos e vinte e oito quando se ouviu o choro de criança. Estêvão, andava a passos largos no corredor da grande casa. Suas botas faziam o piso de madeira ranger assustadoramente. Correu ao ouvir o choro. A menina havia nascido. Coçou a testa e a franziu, talvez pensando no trabalho que daria cuidar de mais uma mocinha. Esperava ele um menino, mas não conteve o sorriso ao ver o rostinho da boneca que havia chegado ao mundo. A mãe chorava de emoção quando tocou vez primeira o rosto da garota.

Liteira discreta, sem cores. Branca com alguns riscos de azul marinho, cortina branca fechando a janelinha, carregada por dois fortes escravos desce nas escadarias da igreja. O pai desce e olha para todos. Muitos jovens esperando para entrar, conversando no Largo da Piedade e lança aquele olhar de repreensão para que ninguém se engrace com sua menina. Ela desce levemente, tendo as mãos apoiadas em Bernarda, a mucama, que tenta com as mãos esconder-lhe o rosto. Em vão. Surpreendentemente, Eugênia retirou as mãos da mucama e olhou fixamente para todos. Parecia não ter nenhuma timidez. Olhou em todas as direções, baixou os olhos e sorriu timidamente, mas de maneira sensual. O pai, observando aquilo, passou as mãos pela barba e bigode, segurou fortemente o braço da menina e disse abruptamente:

__ Vamos. Entra.

Entraram pela igreja adentro, ainda vazia nos seus cento e cinquenta lugares. Um grupo tocava música sacra de alta qualidade, num violino, violoncelo acompanhados por um órgão vindo da Europa com inúmeros e grandes tubos. Um clima de céu.

Sentaram-se na segunda fila de bancos, espaço reservado para os jovens que iriam se crismar. Aos poucos, a igreja foi ficando cheia e a celebração transcorreu na mais absoluta normalidade. Na saída, o pai foi abraçado à filha tentando escondê-la dos outros rapazes. Bernarda dava uma espécie de cobertura até que a menina entrou na liteira e foi rapidamente para casa. O pai seguia a menina caminhando e encarando os curiosos. Pôde-se ver os delicados dedos da menina tocando a cortina da janelinha da liteira e olhando a rua.

Eugênia nunca havia visto a cidade de perto. Sempre que ia à igreja, único lugar em que ela frequentava, era dentro da liteira fechada e nunca contemplava o lugar onde morava. Ao fundo de sua casa ela visualizava montanhas e um lago. Do lago podia contemplar a cidade e as torres da igreja, não muito mais. Era seu mundo. Era um imenso casarão que ficava ao final de uma pequena rua, e dali pra frente as imensas fazendas do pai.

Mas aquela noite foi diferente. Eugênia dormiu sonhando com dois olhos castanhos que se cruzaram aos seus, no largo da igreja, assim que desceu e se encaminhou para o templo. Foi pra esse olhar que ela havia dedicado o sorriso.

PARTE II

O canto do galo pegou Eugênia contemplando a lua pela janela de seu quarto entreaberta. Imaginava ao longe e pensava um dia conhecer o mundo até então somente imaginado nas palavras da sua mucama que atravessou um dia o oceano e conheceu o Rio de Janeiro. Elas se afeiçoaram de forma que se cuidavam como mãe e filha. O violento pai jamais ousara levantar a mão ou a voz para ela.

Adolfo já estava saindo daquela casa e se ausentando por quase um mês. A menina praticamente já estava curada. Ontem fez a última visita e deu o diagnóstico que o pai ansiava:

__ Já não tem mais nada. A menina está completamente curada.

Naquela noite houve um jantar e o noivo foi o convidado especial. Sem doença, Eugênia estava livre pra poder assumir o casamento e honrar o compromisso do pai feito com o amigo de infância, que hoje descansa na eternidade.

Dezoito horas

Família reunida à mesa rezando a Ave-Maria. Estêvão:

__ Senhor Jesus, nesse dia agradecemos o alimento que nos sustenta, a terra que plantamos e o trabalho que nos dá dignidade. Obrigado Jesus pela cura de Eugênia. Hoje prometo fazer uma doação à igreja pelo fim de sua moléstia. Que nos conceda saúde e paz!

Assentados, antes da comemoração, o pai oferece a menina em casamento, oficialmente. Tímida, Eugênia tenta esboçar um forçado sorriso que não convence ninguém. Um silêncio comprometedor domina o ambiente. Algo estava diferente do habitual. Antes, incontestável, agora uma repreensão ao evento prometido. O que se passara com a menina era a grande dúvida dos presentes e que causou um certo desconforto no noivo. Sorrisos disfarçados evidenciavam o constrangimento que também pouco importava. Afinal o compromisso havia sido firmado há anos e ninguém contestava estas atitudes.

A insônia pegou Eugênia de surpresa. Ela que geralmente dormia como um anjo, cedo cedo, viu a lua circundar por todo o céu e contemplou a viagem que as estrelas fazem todos os dias. Havia mais de uma perturbação em sua tenra alma que a consumia como a lava de um vulcão. Pensava e pensava, planejava e desplanejava. Vivia um tormento, mas um tormento que não lhe provocava em verdade uma angústia, mas sim, uma ansiedade que lhe deixava com vontade de sair gritando e correndo pelas ruas da pequena cidade e dizendo a todos que rompia com as tradições de sempre, que queria escolher a quem amar. Tímida, obediente, como todas as mulheres de seu tempo, Eugênia tinha apenas a alforria do pensamento, ainda uma caixa de segredos. Era escrava dos costumes, cativa das tradições e prisioneira dos sentimentos que sempre tiveram mas que nunca se podiam manifestar. Sua enfermidade a deixara mais vulnerável e sensível. Prometera a Deus obedecer sempre ao pai. Mas isso doía... devia amargar e sufocar seus sentimentos. Eram gritos que ecoavam junto aos ventos ignorados das madrugadas, enquanto contemplava aquele rosto em sua mente gravado e observava de sua janela o seu mundo possível. Murmurava para o infinito, juras eternas e assustava-se com a avalanche que haveria de vir, talvez a desmoronar sua existência.

Em suas longas noites, às vezes ouvia gemidos e lamentos vindos da senzala. Nada mais. O som que ecoava em sua mente eram os gritos que saíam de si mesma. Sabia do seu amor impossível e que nem ao menos devia estar ousando sonhar, tal qual uma flor que nasce no inverno e jamais poderá contemplar um jardim. Vive invernos constantes.

A cada dia Paulo se aproxima mais. Frequenta quase que diariamente aquele casarão, com o consentimento de Estêvão para que se estreite a relação com a menina. Bernarda é a única que sabe seu segredo. Escrava, acostumada a todo tipo de sofrimento não ligava muitos para os preconceitos da hipócrita e moralista sociedade em que vivia. Mas sabia, no seu coração de quase mãe que Eugênia estava condenada ao sofrimento. E seria silencioso. E seria doloroso. E seria impossível.

Do outro lado alguém também observa o espaço. Mas não sonha. Apenas sorri lembrando-se daquele olhar que entre uma multidão cruzou com o seu. Dormia tranquilamente sentindo um perfume que poderia ser o dela, uma sensação de frescor que lhe poderia vir de seus abraços e carícias. O silêncio e a noite emoldurava seu corpo esculpido, ao frescor do vento e à luz das estrelas. Deitado ao chão respira o ar que em seus pulmões revigora a paixão acesa naquele dia, nascida em meio a uma multidão de olhares ansiosos que só viu os seus. Vez ou outra se pegava sorrindo, discretamente ao lembrar-se da menina misteriosa. E ficava a imaginar segredos, a imaginar aquela linda casa por dentro, aquele luxo tão distante de sua vida e aquele amor inalcançável, tão distante quanto a Lua, tão inacessível como o Sol.

Passou frente à rua de Eugênia, olhou as janelas. Fechadas. Sempre fechadas. O quarto da menina ficava aos fundos, moça protegida, intimidade guardada. A casa tinha dois andares. Como ela, mais duas construções apenas na cidade, públicas. Era a família mais rica. Uma porta azul, em madeira pesada abria para um corredor que dava na sala de recepção, seguida da de jantar e cozinha. Ao lado dois quartos usados pelo pai para o trabalho. Na parte superior, os quartos, todos com janelas de vidro encoberta por cortinas trabalhadas e bordadas, e quando abertas, treliças de madeira protegiam seu interior dos olhares curiosos. Eram azuis como a porta, contrastando com o bege das paredes. O quarto de Eugênia ficava na parte leste da casa, era a terceira janela que vem descia a rua Direita. Parou diante dele e ficou a observar uns instantes. Não a viu. Bernarda observou a rua da cozinha e franziu a testa pensando:

__ Meu Deus, protege minha menina!

Naquele momento, pouco antes do almoço, Eugênia brincava com sua caixinha de música vinda da França e pensava. A cena começou a se repetir numa frequência preocupante. Todas as vezes que aquele olhar vagava por aquela janela a escrava coçava a cabeça e ficava observando, obediente. Um dia, não mais aguentando, confidenciou:

__ Sinhazina, olha, eu não tenho nada com isso não, mas eu não to mais podendo ver você sabe quem passando pela rua todo dia.

Coração de Eugênia disparou.

__ Quê Bernarda? Eu nunca vi... É verdade?

Eugênia estava eufórica. Com a mucama ela era ela. Naturalmente, sem retoques. Era a única que enxugava suas lágrimas e ouvia amedrontada suas confidências. Explicou o perigo que ela corria, falou da promessa do noivado, do trato com o falecido sogro, da brutalidade do Paulo.... e assim foi tecendo sua ladainha de tragédias possíveis e imagináveis que viria de um possível rompimento desse casamento. E além do mais, tinha uma outra série de inconveniências que a sociedade tão tradicional não iria entender. Nem suportar.

A menina pareceu surda a todos os apelos. Estática, seu pensamento viajou mundo inteiro e chegou até a lua... suspirou profundamente e disse com voz apaixonada:

__ Verdade?

No largo da Piedade alguém contemplava as torres da igreja com nuvens ao fundo, cobrindo parte do azul do céu daquela primavera. Ousara demais. Decidiu que não mais iria passar por aquela rua e que continuaria levando sua vidinha simples, sem maiores preocupações e deixando a vida correr tão simplesmente como o riacho que corta a cidade. Tão somente.

E a menina insistiu, insistiu e insistiu até que a escrava mãe lhe contasse tudo. E contou-lhe quem era, onde vivia, o que fazia e advertiu novamente mais um milhão de vezes:

__ Fica longe menina, é problema. Se o senhor seu pai fica sabendo ou o Paulo, meu Deus do céu...

Mas Eugênia era menina das letras. Havia aprendido a ler, capricho que o pai concedeu por medo de ver a filha tão frágil morrer jovem e lhe restar um pesado remorso. Mais um. E tocava piano com uma graça que em dias de festa, sempre abrilhantava um jantar ao som de músicas sacras. Amava música gregoriana. Com todo o esforço e jeito próprio de menina carente, com aquele olhar de piedade, Eugênia foi arrancando o que pode sobre aquele olhar que cruzou o seu e atingiu-lhe internamente no mais profundo de sua alma inquieta.

Queria mais. Queria enviar um bilhete. Mas que ousadia. Nunca que Bernarda iria permitir. E nada disso deveria estar acontecendo. Paulo tornava suas visitas mais frequentes. Ia quase todos os dias conversar e se aconselhar com Estêvão, a quem tinha admiração filial. Sempre via Eugênia, agora sem cobertura no rosto, que era uma proteção em virtude de sua moléstia. Era brilhante e alvo seu rosto. Os cabelos negros desciam ondulados bem abaixo dos ombros. Gostava de vestidos brancos apertados aos braços e rodado, como de costume. Era de um branco mutilador de olhares. Rosto rosado, a menina encantava quem quer que a olhasse. Mas sua conhecida timidez pública lhe fazia baixar os olhos acompanhado de um sorriso discreto. Só com Bernarda a menina falava mais alto, e sonhava, e falava, e dizia, e falava e coisa e tal.

Ultimamente Paulo sentia a menina arredia. Por vezes não o quis cumprimentar nem ao menos descer as escadas. Sempre dizia estar indisposta, e mesmo quando doente nunca fugia à presença do futuro marido. Coisa de moça crescendo, dizia o pai. Paulo percebia que algo estava diferente desde aquele último jantar. Eugênia parecia pensar por si mesma. Em longas noites ele imaginava que talvez ele não a agradasse. Era rude, como o sogro, sempre conversando alto, de arranque e com voz impositiva, típico dos homens do sertão, machistas e que pensavam que mulher não devia saber ler. Nunca gostou dessas coisas em Eugênia.

Paulo também observava a donzela. Entranhava-lhe esse comportamento. Houve uma semana que ela não desceu um só dia. Foi a única vez que seu pai ralhou-lhe. Ela precisava ser mais atenta, caso contrário se Paulo desistisse ela ficaria desonrada. E que Deus livre qualquer família de algo assim.

Numa tarde de domingo, enquanto Bernarda preparava o jantar olhou pela janela que dava para a rua. Lá estava a olhar para o quarto da menina. A mucama apenas balançou a cabeça e parecida entender que isso ainda ia longe. E dessa vez Eugênia também viu. Havia dias que ela ficava à espreita, esperando. Não ousou sair à janela, mas, quando percebeu o olhar em direção ao seu quarto, abriu a parte externa de madeira e deixou apenas a cortina suave a balançar com o vento. E alguém ficou alguns minutos observando e se foi em sorrisos.

Bernarda percebeu algo mesmo lá da cozinha, coçou a cabeça, depois ergueu as mãos postas ao alto e implorou:

__ Minha Nossa Senhora do Rosário, meu preto velho, olhai essa menina e lhe dê juízo.

Tarde demais. Todos os dias, às dezessete horas em ponto alguém circulava, olhava e ia embora. Paulo vinha sempre em seguida, mas nunca viu a repetida cena.

Segunda-feira, Eugênia havia escrito um bilhete e estava na sala de visitas às dezesseis e trinta. Não demorou muito quando ouviu passos lentos. Quando alguém olhava para cima, a menina bateu na janela, percebeu que havia chamado a atenção e pôs o braço para a rua, deixando cair o recado. Retornou rapidamente antes que fosse notada. Coração disparava, assustadoramente. O bilhete havia sido recolhido.

Encontre-me amanhã, terça-feira, às onze da noite na estradinha atrás de minha casa.

PARTE III

A terça-feira amanheceu cinzenta e com ventos frios. Seria um prenúncio? Eugênia amanheceu sem dormir. Bernarda não sabia do tal bilhete, senão teria enlouquecido. Acordou e chamou sinhazinha no quarto como de costume. Achou a menina pálida e com os olhos carregados.

__ Que foi menina? Interrogou já com aquele tom irônico na voz de quem diz: o que está aprontando?

Eugênia limitou-se a um sorriso tímido. E foi tomar seu café.

__ Dia feio Bernarda. Parece triste.

A mucama olhava para ela com desconfiança.

__ Uai mocinha. É só o capricho do tempo! Tem dia que é assim mesmo! Por que você anda tão esquisita de ontem pra hoje. Eu conheço você, e você está com cara de quem tá aprontando...

__ Que isso Bernarda? Eu apenas...

__ Bom dia!

Era a voz forte do pai chegando. Estevão chegou para o café e já tinha ido supervisionar o curral e a lavoura. Era de pouca conversa nesses momentos. Resumia-se a saber da filha se estava tudo bem e se a mucama precisava de algo.

__ Paulo vem almoçar aqui hoje Eugênia. E virando-se para Bernarda, disse: Faz aquela costelinha que ele gosta ó mulher.

__ Sim senhor, balbuciou a escrava, de pouca intimidade com aquele rude homem.

Ainda deu tempo de espiar o rostinho da menina que se avermelhou todinha e custou a soltar a voz ao dizer:

__ Que bom senhor meu pai.

¬¬__ De folga hoje seu Paulo, gritou o escravo de ganho do senhor Manuel Campos que ficava na barbearia.

__ Quero um corte bem feito e a barba zerada. Hoje eu to com vontade de ficar igual doutor, disse entre sorrisos.

¬¬__ Já sei, disse o negro Francisco dando sua costumeira gargalhada, tá cada dia mais apaixonado...

Foi bruscamente interrompido pela ignorância de Paulo.

__Limite-se a seu trabalho e não fale nada. Não quero ouvir comentário de ninguém, entendeu?

__ Sim senhor.

__ Coloque seu vestido branco Eugênia, hoje vamos ter uma conversa junto com o Paulo. Mandei chamar sua tia, mas ela disse que não quer se intrometer nesses assuntos.

E foi-se.

Eugênia ficou gelada. Imaginava que o pai pudesse desconfiar de algo. Mas não. Se assim o fosse já lhe teria castigado com toda energia. Ainda assim ficou sem entender o significado das palavras. Conversou com a mucama que lhe garantiu ser uma conversa para marcar o dia do casamento e só. E a menina subiu as escadas e remoía a expressão “nesses assuntos”.

Desceu em seguida e foi caminhar pelo quintal. Já contei a vocês que ali se encontra um grande lago e depois a grande fazenda. Sentou-se nas pedras e observava as águas e as torres da matriz da Piedade ao longe. Remoía “nesses assuntos” e imaginava uma resposta caso fosse marcada a data do casamento. Ela não queria.

Não queria mesmo. Mas como dizer isso? Como romper esta tradição? Como não se casar com Paulo? Pensava e pensava em como dizer isso ao pai. Mas ele nunca nem ao menos lhe perguntou sobre o consentimento. Achou que poderia dizer que ele era bruto e que poderia lhe machucar, e certamente o pai não ia querer que a filha se machucasse. Olhou pro céu cinzento e sentiu o vento frio e correu pra cozinha aos gritos.

__ Bernarda, Bernarda. Descobri como fazer que meu pai não me faça casar.

__ Xi, fala baixo menina. Seu pai deve estar por aí ainda...

__ Vou dizer ao papai que o Paulo é violento, decerto não há de querer que a única filha se case com um homem assim...

__ Menina, se assossegue. Paulo é como um filho para o senhor seu pai. Você não se lembra, mas quando sua irmãzinha morreu, com um ano, seu pai já havia pensado em que ela seria a noiva do Paulo. Seu pai sempre quis um filho homem, mas a sorte não lhe deu. A senhora sua mãe era fraca, doente e se alimentava mal. Pouco depois que você nasceu ela se despediu desta vida e me pediu pra que nunca deixasse você abandonada.

O pai nunca falava desses assuntos. Casou-se jovem num casamento arranjado. Estela, a esposa era mulher fiel e dedicada e demorara a ter a primeira filha. Foram três anos de casamento, o que já estava deixando Estêvão envergonhado diante do povo de Águas Claras. Sofria com a morte da filha e da esposa. Ele sempre a tratou com carinho. Agora era ele e Eugênia. E embora Bernarda fosse escrava da casa, sempre a respeitou e nunca levantou a mão ou a voz para ela.

__ Eugênia minha querida, você precisa aceitar sua condição. A mulher não escolhe marido, nunca escolheu! Casa como os pais decidem e pronto. Sempre foi assim minha filha! Olha sua mucama velha, eu nem tive o direito de casar.

E começou a contar sua história. Bernarda era uma das primeiras escravas nascidas no Brasil. Aos quinze anos, tinha apenas se engraçado com um escravinho que não foi adiante. Foi logo vendida para Estêvão que a deixou na casa, junto com a falecida mucama aprendendo os ofícios domésticos. Terminou aqui a vida amorosa de Bernarda. Linda, corpo perfeito, foi motivo de inúmeras promessas de amor de um ou de outro, mas nunca se deixou amar. Trazia a marca e a saudade daquele jovem que um dia ela deixou para trás.

Em meio a tantas histórias, o dia foi avançando. Quando percebeu, já estava quase na hora do almoço. Bernarda que era experiente já estava com a costelinha temperada e o fogo aceso. Da sua janela contemplava montanhas, era o quadro mais lindo que se via de sua cozinha. A menina subiu as escadas para se aprontar. Coração aflito havia agora de ficar remoendo as palavras da mãe preta.

Subia as escadas e pensava: será que não posso escolher como viver minha vida? Ah meus Deus do céu! Será que estarei pecando muito? Como acreditar que o amor é pecado? Como acreditar que querer bem fosse contra Jesus que tanto amou? E remoía, remoía e remoía.

Ajeitou-se rapidamente e esperou que o pai chamasse. Mulher direita não descia à sala quando estava um homem em visita. Bernarda aprontou a mesa, os homens assentaram-se, tomaram vinho, conversaram e o pai a chamou.

__ Eugênia, ô Eugênia, desce aqui filha. Paulo quer lhe ver.

__ Já vou senhor meu pai.

E desceu, olhos úmidos, coração palpitante, cabeça baixa. Precisava encarar Paulo nos olhos e mostrar que não quer se casar com ele. Mas como? E remoía as palavras da mãe preta. E imaginava se ia dizer que se casaria ou não. Pobre menina, essa pergunta não lhe seria feita.

Paulo levantou-se ao ver a jovem, tocou-lhe a mão e beijou-a, como de costume. Arrastou a cadeira e fez aceno com as mãos para que ela se assentasse. Começaram o almoço. Bernarda ficava na cozinha, ouvindo em pé tentando ouvir o assunto e pedindo a Nossa Senhora para não deixar a sinhazinha fazer besteira.

__ Muito bem minha filha - falou o pai após um eterno intervalo entre uma garfada e outra – você sabe que quando nasceu, prometi ao meu amigo, o falecido Erasmo, pai de Paulo, que você se casaria com ele. Não éramos parentes, mas nossa amizade vinha desde a juventude, quando meu pai já convivia com o avô de Paulo, e eu lhe fiz essa promessa no seu leito de morte. O menino ainda era criança. Paulo hoje veio oficializar o pedido e marcar a data. Você já está virando mocinha e não pode ficar solteira por muito tempo. Não quero ver filha minha mal falada nesta cidade.

Ela permanecia de cabeça baixa, parecia querer chorar e não dizia uma só palavra. Certo momento lançou um olhar enigmático para o futuro marido, como que o querendo intimidar.

__ Paulo, faça seu pedido.

Na cozinha Bernarda fazia milhares de sinal da cruz, fechava os olhos fervorosamente e pedia a intervenção divina...

__ Pois bem, senhor Estêvão. E virando-se, continuou: Minha cara senhorita Eugênia, em memória do senhor meu pai, e atendendo à promessa feita por seu pai, venho pedir-lhe a sua mão em casamento, o que é o meu mais profundo desejo.

__ Está concedido o matrimônio Paulo. Vamos unir nossas famílias, e vocês vão gerar herdeiros netos para perpetuar nossa memória.

Eugênia pensava no encontro marcado para a noite daquela terça-feira. Era a única sensação que lhe passava pela mente. Imaginava como ia sair, imaginava se alguém a visse, imaginava o mundo... nem parecia estar ali. Mas ouviu, apesar disso, palavra por palavra de Paulo. Pensava que iriam perguntar sobre sua aceitação. Não perguntaram. Queria saber se Paulo a amava ou se pedia casamento somente por causa da promessa a seu pai. Já ouvira histórias dele com uma ou outra de suas escravas. E dava-lhe grande vontade de gritar que amava alguém que não fosse Paulo, que ele não precisava se casar por obrigação, que ela dispensava-o desse fardo.

__ Com todo respeito, senhor Estêvão, eu gostaria de saber se é da vontade da senhorita Eugênia casar-se comigo, se ela está satisfeita com a promessa...

Súbito, ele levantou-se, puxou o cinto para cima e disse com voz e rosto carrancudo e levantando o dedo para o genro: Ora já se viu! Isso é lá pergunta que se faça? Casamento é promessa feita e cumprida. Não existe se está satisfeita ou não. Ora que ideias meu Paulo?

__ Desculpe-me, só quis ser gentil com a senhorita Eugênia.

Após um silêncio mortal, encerrou-se o almoço. Estêvão desconfiado daquela conversa foi-se para o trabalho pensante. Paulo, na verdade, nada quis dizer de significativo. Apenas realmente queria ser gentil. Já Eugênia pensava que Paulo talvez a dispensasse do casamento. E assim mais segura ficou para seu encontro.

Dia longo. Nos dois lados da pequena cidade. Eugênia planejara cada passo e como ia sair escondida. Chegou a noite enfim. Eram vinte e uma horas quando todos foram dormir e as luzes dos quartos foram apagadas. Burburinho na senzala, cozinha silente. Eugênia respirava ofegante. Colocou sapatos de tecido e esperou olhando pela janela a noite que estava brilhante. Vinte minutos antes, passo a passo desceu as escadarias. Ninguém a viu, ninguém imaginaria que a sinhazinha poderia pensar em sair. Paulo também não dormia. Pensava no silêncio e na indiferença da moça. Sabia que ela não o amava e imaginava que seu coração era ocupado por alguém. Nenhuma mulher demonstrava esse desinteresse. E pensou em observar a moça.

A porta estava destrancada. Eugênia havia deixado tudo pronto. Saiu. Colocou um capuz e saiu discretamente. Como sua casa ficava no fim da cidade, ninguém a veria. Chegou na estradinha e olhava para os lados. Assustada, quando ouviu um barulho de galho balançando e uma voz suave:

__ Oi.

PARTE IV

Havia um prenúncio de chuva naquela noite. O dia cinzento, embora firme, ameaçava com essa possibilidade. Mas não chovera. Caía uma finíssima névoa fria que turvava a visão apesar da lua cheia. Eugênia sentia muito frio, e quando ouviu aquele “oi” um frio na espinha cruzou seu corpo norte sul e arrepiou os cabelos. Virou-se para a direita, onde estava aquela pequena planta que balançara.

__ É você? Balbuciou Eugênia, soletrando.

__ Sou eu. E saiu e foi para a estrada.

Súbito disse:

__ Vamos ficar mais aqui, mais às escondidas, pois se alguém nos ver corremos muito risco.

Eugênia deixou sua timidez de lado e foi dizendo logo:

__ Eu nunca mais tive sossego na alma depois que meus olhos cruzaram os seus naquela tarde. Eu não deixei um só dia de pensar em você.

E começou a contar sua trajetória, desde a doença, até o noivado com o Paulo. Conversaram. Cada um contou sua vida e o encanto cresceu. E se marcou novo encontro. Esse primeiro durou quase quatro horas. Eugênia voltou como saiu, pé ante pé, foi ao quarto, mas não dormiu. Passou a noite observando a janela e depois a chuva que começou a cair pouco antes da aurora.

Eugênia desceu as escadas e foi direto pra cozinha. Abraçou Bernarda apertado e respirou profundamente. A escrava virou a cabeça para trás com aquele olhar de o que foi menina? Mas não perguntou, apenas pigarreou um hum hum. Ela no fundo sabia que a menina estava aprontando. Nunca havia notado tão grande e belo sorriso no rosto de sua sinhazinha. Eugênia ficou assentada no banco de madeira ao lado do fogão à lenha, e silente por quase uma hora, enfim desatou a falar:

__ Bernarda, você já teve sonhos?

__ Vixe Maria, mas que conversa estranha - falou balbuciando.

__ Bernarda, você já sentiu que podia ser feliz?

__ Olha menina, falou a mucama com dedo em riste, não sei porque você está assim com essa cara de boba, mas sinhazinha Eugênia, toma juízo menina. Não me diga que está se engraçando com você sabe quem.

__ Que nada Bernarda, estou é deveras muito feliz! Só isso, tive um sonho maravilhoso essa noite e acordei pensando nele.

E a mucama desconfiada, e a sinhazinha com cara de boba. O dia inteiro. Paulo tem vindo todos os dias após o almoço para ver a menina, que com ele, sempre retraída. E observando-a antes de chamar e entrar não pode não perceber que Eugênia mudava de ares quando o via. Parecia ser triste a seu lado.

__ Patrão, gritou o escravo Francisco, vai chover, quer que eu recolha o milho?

E ninguém respondia.

__ Patrão, ô patrão. Patrão... e insistia até que Paulo se deu conta.

__ Hã, o quê Francisco? O milho, chover, sim... Chame os escravos na lavoura e vão guardando tudo.

Paulo já não conseguia a firmeza de sempre com os seus. Paulo continuava com o trabalho da fazenda do senhor seu pai, mas ultimamente andava estranho. Coisas de amor, diziam os escravos e suas irmãs.

Enquanto vinham cantarolando e guardavam o milho naquela cantoria-lamento, Paulo pensava em como Eugênia estava mudada e resolveu observar e ficar na espreita.

Eugênia já ficava numa cadeira próxima à janela da grande sala de estar, no andar de baixo olhando para a rua. Atitude que seu pai estranhava, mas que também não significava nenhum problema. Mas perguntou:

__ Ó Bernarda, que diacho tem essa menina que agora não sai dessa janela?

__ É que de tanto viver fechada meu senhor, agora gosta de sentir o ar que vem das janelas. Vai ver que é isso!

__ Mas não podia ser da janela dos fundos? Ou do quarto dela? Diacho de coisa esquisita é a tal de mulher.

Mas também não deu muita importância.

Passaram-se duas semanas. Eugênia encontrou-se com aqueles olhos castanhos ainda três noites. E voltava sempre mais eufórica, e mais alegre. Bernarda já havia advertido a moça da desconfiança do pai...

__ E decerto Paulo há de estar desconfiado também – falou a mucama em tom de ameaça.

Mas nada mudaria Eugênia

Noite anterior, na estradinha atrás da sua casa Eugênia havia tomado uma decisão.

__ Vamos fugir. Não me importa mais nada. Eu quero ir atrás da nossa felicidade. Meu pai há de entender com o tempo.

__ Mas não temos riquezas se fugirmos. Para onde iremos?

__ Eu tenho. Meu pai guarda as joias de minha mãe e tem ouro guardado em casa. Podemos vender e dá pra comprar uma casa bem longe daqui. Depois a gente avisa para nossos pais não se preocuparem.

__ Eu amo você, eu preciso do calor da sua pele e ardor dos seus beijos. Mas fugir? Eu não sei, a gente precisa pensar melhor. Afinal tem o Paulo, seu noivo, ele pode se enfurecer e vir atrás de nós. Temos que tomar muito cuidado.

Eugênia entendeu que, apesar do amor forte, precisaria se conter um tempo mais. Aquele dia voltou triste. E triste ficou durante o dia contemplando o lago e as torres da matriz. Mas marcaram outro encontro.

Paulo, que sempre ia à casa após o almoço, continuou com essa rotina mas passou a observar a casa em horários diferentes, de forma desapercebida, na taverna da esquina ou no barbeiro de onde se podia ver o casarão. E não notou nada diferente. Um dia, resolver olhar a casa ao anoitecer. Viu apagarem-se as luzes e o sobrado adormecer.

Naquela noite Bernarda acordou com o coração acelerado. Teve sonhos estranhos, abismos, corredeiras violentas e via uma árvore seca. Ficou dia todo angustiada. Observava o senhor trabalhando, Paulo cada dia mais estranho e Eugênia silente. Ela estava cada dia mais com frases curtas. E sem sentido. Naquele dia a menina foi ao lago, sentou-se a seu lado no banco perto do fogão à lenha e sorria ingenuamente. O casamento seria em dois meses e já se estava quase tudo arranjado. Ela pensava em como faria para se livrar de Paulo. Não havia outra solução senão a fuga.

__ Bernarda, você ficaria triste se eu fosse embora daqui?

Iria morar comigo?

__ Quê isso sinhazinha? Que conversa esquisita?

__ Eu vou me casar, vou me mudar, queria que viesse comigo.

__ Ah sinhazinha, sou escrava, não sou dona da minha vontade. Isso quem determina é o senhor vosso pai.

__ Mas e se eu fosse pra outro lugar e levar você comigo? Na minha casa você não seria escrava. Poderia ter sua casa se quisesse e poderia ir onde desse vontade...

E Eugênia falava e sonhava, enquanto a mucama apenas franzia a testa e pensava e pensava e pensava.

Paulo chegou naquele fim de tarde cansado da fazenda. Tirou as botas e relaxou os pés. Pensou: hoje eu vou espiar a Eugênia é de noite, vou ver que horas aquela menina vai dormir. Tem andado com os olhos vermelhos demais, deve estar sem sono. Pensava ele que ela estava ansiosa com a proximidade do casamento. Virou-se para o lado, gritou a irmã e pediu que ela o acordasse antes das vinte horas. Dormiu.

Naquele casarão do fim da rua, com lago ao fundo donde se pode ver as torres da Matriz de Nossa Senhora da Piedade, Eugênia imaginava uma fuga. E pensava nas consequências, no desgosto do pai, na preocupação de Bernarda e no falatório que seria na cidade. Pensava ela que o pai não mais poderia continuar vivendo naquele lugar. Quiçá morreria. Por outro lado ficava imaginando sua vida ao lado de Paulo, mulher oprimida e obediente, silente e nada mais. E ainda mais ficava imaginando como seria sua vida ao lado de quem amava. Eugênia tinha pouco tempo para resolver sua vida. Passavam mil imagens sobre sua vida futura. Eram as inúmeras projeções a que todos nós estamos acostumados. Mas as de Eugênia eram carregadas de emoções fortes. E de vidas perdidas. Muitas. A dela talvez.

Havia combinado a fuga, mas não dera certeza. Paulo cada dia mais desconfiado de seu jeito suspeitava já mesmo do pior. Chegara ao absurdo de pensar que a noiva tinha outro. Absurdo porque impensável para uma jovem que mal saía de casa e sempre acompanhada do pai.

Seguiram-se mais três encontros na estradinha atrás da sua casa. Um dia Paulo chegou a estranhar o acender de luzes no quarto já tempo depois de terem sido apagadas. Mas não vira a menina sair, sempre pelos fundos. Mas desconfiou e ficou à espreita. Era uma terça-feira. Uma semana antes do noivado. Eugênia seguiu o ritual da saída, esperando todos irem dormir, desceu as escadas e foi ao encontro de seu verdadeiro amor.

__ Desculpe-me. Atrasei hoje – disse Eugênia sorridente.

__ Tudo bem, eu sempre chego uma hora antes do previsto. Não quero nunca perder a oportunidade de tocar seu rosto tão suave quanto a noite.

__ Eu decidi. Meu casamento será no sábado da outra semana. Meu pai já está com toda a festança programada. Vamos fugir na quarta-feira anterior. Será um dia de festa em minha casa. O senhor meu pai vai dar um jantar e todos festejarão. Assim que dormirem, nós vamos.

__ Mas você tem certeza? Pensou nas consequências todas?

__ Já chega. Sei de tudo, não posso mais pensar. Tomei minha decisão. Sei que vou ferir muita gente, mas não posso continuar me ferindo a cada dia.

Após um silêncio de morte, um suspirar profundo...

__ Então. Está combinado.

Dia e hora marcada. Destino selado. Expectativa. Dois dias seria o prazo. Tudo pronto.

Eugênia estava silente. Bernarda estranhava.

__ Sinhazinha, não tem nada pra contar não?

__ Não Bernarda. Tudo vai ser como tem que ser.

O Pai notou que a jovem entristecia e estava mergulhada em pensamentos. Paulo continuava observando a casa e estranhava que as luzes se acendiam horas depois que todos iam dormir. Estranhava o silêncio de Eugênia. Resolveu vigiar a noite toda.

Era uma quinta-feira. Eugênia tentou não chamar a atenção nem ficar diferente naquele dia. Almoçou na presença do pai e do noivo. Compartilhou sonhos com a escrava e contemplou o lago, de onde se podia ver as torres da Matriz da Piedade. À tardinha, após o jantar sentou-se no banco da cozinha.

__ Bernarda, quando eu me casar vai sentir minha falta? Porque eu sim, vou sentir muita saudade.

__ Vou sinhazinha, mas vou te ver sempre. O senhor seu pai permitindo irei lhe ver. E, além disso, poderá vir aqui.

__ Sim.

__ Mas porque está triste minha menina? Quer colo da mãe preta?

Eugênia nem esperou a mucama terminar e sentou-se, sendo longamente acariciada em seus cabelos. Lágrimas poucas rolaram do rosto da noiva. E sobrou um pensamento abafado no peito de Bernarda, que suspirava ao olhar o rosto da menina.

Apagaram-se as luzes do casarão. Paulo observava. A noite estava enevoada. E como havia prometido, continuou esperando. Aproximou-se. Percebeu quando já, entre um gole e outro de aguardente uma fraca luz acendeu-se no quarto da menina. Viu vultos por entre as janelas. Esfregou os olhos e olhou novamente, percebendo movimentação no quarto.

O coração de Eugênia estava palpitante. Havia colocado dois vestidos e as jóias em uma bolsa, juntamente com outros poucos objetos e descia as escadas. Antes olhou para o fundo da cozinha, onde dormia Bernarda. Quis abraçá-la. Pé ante pé saiu pela porta dos fundos. Paulo rodeava a casa e parecia não crer no que via. Via sua menina sair de casa, altas horas da noite e passar por uma abertura no muro e encaminhar-se para a estradinha. Era ela. Ele tinha certeza apesar do nevoeiro que cobria aquela noite.

Seguiu a noiva e estava enfurecido de ódio. Imagina o que poderia ser, tinha certeza. Sua noiva tinha um amante. Como pode? Tão meiga, tão tímida... mas apesar do álcool já fazer efeito delirante, ele a seguiu friamente.

__ Oi – disse como de costume ao chegar à estrada. Está aí?

__ Sim, já faz duas horas que lhe espero.

Paulo estava cego de raiva. Sem ser percebido, há poucos metros de distância ouviu os sussurros de amor. Esperou atônito. Foi quando viu, em estado de êxtase, um abraço seguido de um longo beijo. Tentou reconhecer, mas não via nada além de um rosto na escuridão em meio ao orvalho. Sacou sua arma e deu um tiro direção de quem beijava sua noiva. Ouviu-se um longo grito de horror. Paulo gritou:

__ Toma o que merece seu safado! E soltou um grito que acordou toda a vizinhança. Aos poucos chegaram o pai de Eugênia, a quem ele foi narrando o acontecido. A mucama, mãos à cabeça gritava por Nossa Senhora e pelo nome da menina.

__ Onde está minha filha?

__ Correu. Beijava à noite cheia de névoa e correu. Eu mesmo vi um vulto que balançava os cabelos correr fazenda adentro.

Ainda conversavam quando a mucama se derramou em lágrimas e gritos de desespero, ao contemplar no meio da estrada, sem vida, o corpo da sinhazinha que havia criado como filha.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 27/03/2017
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