O trem da solidão
À frente, a máquina esquisita e barulhenta carregava os vagões como cartas de um longo baralho. Da fumaça enxergava-se o vomitar de faíscas cintilantes que, contra a força do vento e vencidas, muito mal chegavam vivas até o terceiro vagão. Mantinha minha janela fechada para não ter a conjuntiva queimada por uma faísca escapada da fumaça da chaminé do trem. Piuí..., piuíiiii, lá se ia o velho trem das seis da tarde voltando ao subúrbio e deixando Maceió para trás.
Aqui e acolá, no vagão em que vinha, podia ver um corpo sonolento balançando no ritmo do andar faceiro da máquina por cima dos trilhos gemedores que não deixavam os dormentes, dormentes, dormirem.
Maria pão, fumaça não; Maria pão, fumaça... O trem, eu e minha alma viajávamos. Olhava as pedras do chão, a paisagem que também ia ficando para trás, as serras que também iam ficando lá longe, para mim, todas pagãs.
O trem parou na primeira estação. Uma leva de gente cansada subiu. Meu vagão não estava mais vazio como há pouco. Ninguém sentou do meu lado. Aproveitei para esticar as pernas e as pôr sobre o assento da poltrona da frente, encostar a cabeça na janela e fechar os olhos. Cadê dormir. O balançado frenético do trem balançava até a alma. Minha cabeça virara martelo e a tábua da janela recebia as pancadas do meu occipital com o mesmo ritmo da máquina.
Maria pão, fumaça não; Maria pão, fumaça não..., e o trem continuava correndo apressado e decidido a chegar. Vi o sono de tanta gente ceder junto ao balanço de seus corpos cansados que retornavam de um dia duro de trabalho. Tão pouco ganhavam, tão muito sofriam e, todo dia: Maria pão, fumaça não.
Eu descia na última estação e parada. Na estação do viradouro do trem, quase ninguém descia lá. Por esse motivo eu sempre escolhia viajar nos vagões da frente, perto da máquina para não chegar tão solitariamente ao destino de todos os dias. O vagão escuro, a finitude da linha férrea, a hora adiantada da noite...
Um homem ocupava a última cadeira do vagão onde eu estava. Achei estranho. Não morava na minha vila. Um ladrão não poderia ser porque estaria em destino errado: vila de pescadores, paupérrima , Última parada do trem..., o que ía fazer um homem desse num lugar como aquele?
Um homem alto, magro, bem vestido, fácies de sofrimento e um pequeno embrulho na mão esquerda. Vi quando se levantou. Exatamente na reta da trilha do Anão, antes de contornar o bico da serra e chegar na redução da chegada para a estação do viradouro. Pensei mil e uma coisas. O homem apressou os passos, deixou o embrulho cair de sua mão e atingir a passarela onde os vagões se engatam para formar a grande serpente do trem. Tive vontade de lembrar-lhe o embrulho. Não o fiz porque tinha a certeza de que o embrulho tinha sido derrubado a propósito.
Tive medo. Escondi o rosto entre minhas mãos. O apito do trem ardeu alto no vento frio que enchia a escuridão de uma noite desluarada. Tive um presságio horrível. De repente o homem sumiu, alguém acionou o freio da máquina, vi correr, entre cadeiras do vagão onde eu estava, meia dúzia de gente e foi aí que ganhei a força da curiosidade para me levantar e ir ver o que acontecera.
Como os vagões são partes de um trem, assim o eram os pedaços do corpo do homem triste que passara por mim há pouco. O cérebro cobria o rosto como um glacê branco insípido e inodoro. Um olho estava na mão direita decepada e as pernas enganchadas entre as rodas do vagão parado. Coágulos sujavam os trilhos que não tinham veias para guardá-los.
Quando pensei no embrulho que havia caído da mão do homem agora morto, corri e ainda o achei. Era um pacote bem feito. Possuía várias dobras de papel, bem amarradas com barbante. Abri folha por folha do papel amarelo grosso, desatei seus nós e cheguei ao conteúdo que buscava ver com a volúpia de minha curiosidade. Pensei achar uma carta triste que procuraria esclarecer o gesto do suicida. Não! Havia dentro dele o motivo das lágrimas que nasceram do meu rosto quando li o que encontrei:
“O suicídio foi a única forma que encontrei de livrar-me de uma dor feroz que me perseguia, a solidão. Vivi a solidão do desemprego, da separação conjugal, da saúde e, por fim, de mim mesmo. Tenho a certeza de que minha alma será resgatada por outras que me ensinarão a viver noutras vidas, como um maquinista que sorri ou um casal bem estabelecido, ou um profissional realizado. Só não haja estação ou parada onde ninguém esteja a me esperar. A solidão é a miséria mais brutal que uma alma pode receber. Vou pular deste trem e os pedaços que sobrar do meu corpo ficarão lado a lado sem que nenhum deles sinta-se só, ainda que mortos e jogados nos trilhos de um suicídio que, de desventura, teve muito menos que de solidão. É uma pena que minha alma não possa ficar para pedir desculpas aos passageiros desta viagem, pelo susto, e também por não poder limpar os trilhos que deverão ficar reverberando o gestinho tênue entre o antes e o depois da hora de um desespero como este, intraduzível para a sanidade.”
E no dia seguinte a velha máquina continuou sua rotina diária e: Maria pão, fumaça não...