O patriotinha
Éramos adolescentes e vivíamos em uma cidade mediana do interior de Pernambuco: Vitória de Santo Antão. Era eu e mais quatro garotos, e reuníamos e conversávamos e falávamos mal do Brasil. Esses encontros efervescentes provocavam situações inusitadas, estranhas e até inoportunas: naquela época, havia uma euforia nacionalista em prol de uma brasilidade grandiosa. E nos encontrávamos nas praças, nos bares e até mesmo no colégio, onde estudávamos. E naqueles momentos de descontração juvenil, estávamos nós, sempre falando mal do Brasil. A exceção era um garoto, vindo de uma cidadezinha próxima da nossa . Um tipo excitado, falava alto e era muito estudioso; diziam que ele possuía vocação para a oratória, era elogiado pela sua desenvoltura verbal. Verdade! As palavras fluíam naturalmente em sua boca de menino. Era uma eloquência rara, em se tratando de uma pessoa de tão pouca idade. E brincávamos, chamando-o de "político nordestino", um novo Ruy Barbosa, que surgia para abrilhantar os debates intelectuais da segunda metade do século XX . E ele era apaixonado pelo seu país- Brasil- por isso, seu apelido :patriotinha.
Sempre agredíamos o Brasil. Em tom jocoso, dizia um dos garotos:" o Brasil é uma lugar devasso, depravado mesmo, um prostíbulo vagabundo, gringo só vem aqui fazer sacanagem com as nativas, principalmente com aquelas que se perderam na vida, e sem oportunidade de sobreviverem, fazem sexo, por dinheiro". O outro, ainda com mais agressividade, dizia:" esse é um país de cabra safado, de corruptos, criminosos, ladrões; gente que só pensa no seu próprio interesse". O outro emendava:" é, isso nunca vai pra frente, o povo não tem cultura, a elite não presta, não tem compromisso com o desenvolvimento social, e tem muita coisa errada". O garoto patriota, eufórico, lembrava os grandes feitos dos nossos antepassados, a insurreição pernambucana e outros fatos importantes da história brasileira, e com ênfase, dizia: “ nunca abrimos mão da nossa soberania, não aceitamos a dominação estrangeira; lutamos pela nossa liberdade, expulsamos invasores imperialistas, e tantas vezes participamos de lutas pelas causas nobres envolvendo os interesses da nossa nação, e também demostramos bravura e coragem quando foi preciso defender o mundo livre , e sempre com um comportamento em consonância com os valores democráticos e civilizatórios, e mesmo na guerra, enfrentando inimigos poderosos no campo de batalha, não perdemos a dignidade e o respeito pela vida; e a vitória estava ao nosso lado; e assim, participamos e ajudamos a construir a história humana. Temos uma natureza diversificada e generosa ,e a cultura está cheia de pessoas criativas e inteligentes, tanto a erudita quanto a popular. A comida, com seus sabores atraentes, é vários ingredientes juntos, e é a cara da nossa miscigenação, que é a mistura de cores e raças e que só esse povo, dedicado e comprometido com o humano, soube construir. E há tantas frutas, nas mais variadas espécies, e as árvores com seus aspectos vigorantes enfeitam essa paisagem de fascínio e beleza .E há muitos bichos nas florestas e nos campos, e os pássaros com seus belos cantos parecendo um hino ,exaltando a grandeza deste solo abençoado . O Brasil tem um passado glorioso e será ainda maior no futuro, e vai superar todas as adversidades”; e concluía:" um dia o Brasil vai ser um país respeitado, uma nação valorosa por todas as suas riquezas , e o mundo reconhecerá a sua importância ".
E uma certa vez, queimamos a aula e fomos a um barzinho, tomar cerveja, e claro, falar mal do Brasil; evidentemente, enfrentando o patriotinha ,que com uma erudição admirável , um talento nato para expressar suas ideias e conceitos, como também sobrava nele um orgulho de um patriota verdadeiro, fazia a defesa da nação brasileira .E assim foi, como sempre acontecia. As agressões à pátria tupiniquim era o principal assunto daquela roda de amigos. Eram quatro contra um. O patriotinha, defendendo-se e apresentando seus argumentos que não convenciam aqueles seus amiguinhos debochados e irreverentes que, de modo descompromissado, evidenciavam as agruras e as perversões do lugar onde nasceram . E aquele debate tão pouco convencional ia seguindo em um clima acalorado. E bebíamos. O tempo passava. O álcool já estava fazendo efeito nas cabeças daqueles jovens cuja a inconsequência e a rebeldia da maioria daquele grupo eram um combustível para uma farra muito animada. E assim, cada palavra de ofensa ao Brasil, era respondida pelo patriotinha com um elogio ao seu país com amor e admiração .E a certa altura daquela competição desigual, o patriotinha não estava mais aguentando ,um de nós fez uma proposta de irmos ao cinema.E que foi aceita , de imediato. Quando chegamos ao Cine Braga, tivemos uma decepção, o filme era japonês, de caratê. Ou seja, uma verdadeira picaretagem. Mesmo assim, resolvemos entrar. O filme já estava quase em seu final.E o mocinho, após uma briga com centenas de inimigos, venceu todos ,é claro, sentou -se no sofá, pegou uma garrafa de uísque e deu um gole. Porém, nem chegou a ingerir o líquido, pôs para fora, e fazendo uma cara de enjoo , disse:" uisque nacional". E uma voz masculina , no fundo da plateia, reagiu: "pronto, já começaram a falar mal do Brasil!"