VIDAS CRUZADAS - PARTE FINAL
Os habitantes do quilombo acolheram com carinho a Manoel. Combinaram que no fim da semana iriam resgatar as duas. E vai ter festança de três dias.
Rosa precisava saber. Luzia estava disposta a revelar o que sabia, tudo o que ocorrera naquele ocaso do inverno de 1801, quando, atônita, ouvindo grande barulho vindo do porão da casa grande. Respirou fundo, pensou ... e prosseguiu.
― Olha moça, é o seguinte. Não posso lhe revelar tudo o que sei, não posso prejudicar meu filho. Mas não vou esconder que não suporto a ideia de ver Felipe casado com você. Então, é o seguinte:
Se Isabel lhe contou sobre meu marido e sua mãe, não posso negar. Sim.
― É verdade!!! Meu Deus – exclamou Rosa levando as mãos à cabeça.
― Na verdade, certeza absoluta eu também não tenho. Afinal, sua mãe era de fato muito bonita. Meu marido não foi o único. Ouvi boatos de um outro escravo que teve um romance com ela, dizem até que o pai de Manoel...
Neste ponto da narrativa, Rosa já não ouvia. Ensurdeceu-se por dentro, sufocada pela verdade que sempre se negara a saber. E pensava: sou irmão de Felipe, mas será também que poderia vir a ser irmão de Manoel? A moça saiu correndo, ensandecida.
Luzia sentia-se vingada. O casamento do filho acabou-se naquele momento. Mas no fundo se preocupava. Se ele soubesse a odiaria para todo o sempre.
Chegou gritando para Isabel, chorando e dizendo que era tudo verdade. Isabel abraçou-a, compreendendo logo do que se tratava. E confirmava baixinho a seu ouvido...
― Não fica assim. Agora entende que você é irmã de Felipe. Esse casamento nunca poderá se consumar. Mas pelo amor de Deus, não diga nada ao sinhozinho.
― Mas ela falou que posso ser irmão de Manoel também...
Isabel assustou-se com essa revelação. E após ouvir a história, contestou-a, dizendo:
― Não Rosa, o pai de Manoel nunca se relacionou com sua mãe. Ela tinha um namorado, que foi vendido assim que o senhor Anselmo se apaixonou por sua mãe. Apenas nós mais velhos sabemos dessa história, mas ninguém falou nada. Que ela, de fato, se relacionava com o senhor, sei disso. Mas era escondido. Não há como você não ser filha dele.
Isso foi acalmando a moça, que em sua cabeça pensava em contar a Felipe e deixar a fazenda. Ao dizer isso, Isabel pedia que ela fugisse. Não poderia correr o risco. Felipe ia ficar furioso e poderia não terminar bem. Respirou fundo... elaborou um pequeno plano: vou fugir.
Manoel marcharia dia seguinte com mais três amigos. Estava sorridente.
Felipe procurava Rosa. Ela não estava em casa. Luzia desconversou, disse que ela havia conversado sobre o temperamento do filho e que ela foi para a senzala e voltaria logo. Tudo parecia bem. Rosa, mais cedo ou mais tarde precisaria voltar. O que fazer?
Aquele dia ela evitou voltar pra casa. Ficou na senzala até que não pudesse mais. Voltou já anoitecendo. Entrou direto para o quarto de Luzia e conversou um pouco mais, disse que duvidava da irmandade com Manoel, ao que a senhora pouco importou. Queria ela que soubesse mesmo que Felipe era seu irmão e por isso não se casaria com ele.
Felipe estava inquieto. Notou a ausência e percebeu que Rosa o evitava após o encontro com sua mãe. Naquela altura, preferiu sentar-se na varanda da casa grande e observar o silêncio da noite, emoldurada por um cordão de estrelas ao sul, sentindo o vento impetuoso daquele inverno que parecia não ter fim. Rosa aquecia seu corpo em pensamentos. Sonhava com o dia que a teria em seus braços, nas noites escuras na fazenda Santo Antônio. Pensou mesmo em forçar a barra um pouco mais com a menina, mas avaliou que a expulsão de Manoel já seria suficiente. Questão de tempo, concluía.
A madrugada o pegou em seus sonhos, ainda insone. A lua começava a despontar no horizonte, imensa, deixando pairar um pouco de luz sobre aquela aflita alma que, como uma estátua de bronze, recusava-se ao mínimo movimento sequer, deixando apenas em efervescência os pensamentos que viajavam pelos sertões e brusquidões daquelas terras conquistadas dos indígenas, décadas atrás por seu avô.
A lua iluminava também um pequeno acampamento onde Manoel e os amigos aguardavam a aurora para empreender mais um pouco de caminhada. Não estava distante do seu destino, mas precisava planejar minuciosamente cada passo, e articular, junto com o velho e bonachão comerciante, o seu alucinado plano de sequestro.
Rosa dormiu, alheia a tudo. Ficara debruçada na janela do quarto da senhora, sobre a pequena cama que para ela foi instalada, confortavelmente, ao fundo do quarto. Ela também observava o mesmo luar que, iluminava seus amantes, que nela viam seu rosto meigo e seu sorriso tão inocente.
Os primeiros raios de sol surpreenderam os jovens apaixonados ainda acordados, mergulhados em seus sonhos. Levantaram-se para seus afazeres, quando a velha Albertina, aquela que havia oferecido veneno ao Anselmo, bateu à porta da quarto, procurando por Rosa. Tina, como era chamada carinhosamente pelos seus, era como um livro de recordações. Sabia de tudo. Era geralmente muito calada, mas estava cansada de ver tudo no silêncio da sua cozinha.
― Rosa minha filha, vou lhe contar uma história – disse enquanto segurava a jovem pela mão e caminhavam rumo aos jardins e o riacho ao fundo da senzala – você não pode se casar com o sinhozinho Felipe. Ele é seu irmão.
Pensou que, assim de supetão, dando um choque direto, bem a seu estilo, a menina cairia em si de uma vez. Surpreendeu-se porém, com sua serenidade, e observava assustada a ausência de reação, quando...
― Tina, eu sei disso. Isso me alivia de certa forma, pois decide por mim. Não posso aceitar esse pedido de casamento. Só tenho ainda uma dúvida: Francisco, pai de Manoel também se relacionou com minha mãe? Ele também pode ser meu irmão?
Albertina sorriu largamente...
― Ora meninas, quem lhe disse essa loucura?
― Foi a senhora Luzia, Tina. Do que está rindo?
― Essa madame é louca menina Rosa. Francisco sempre respeitou a sua mulher. Ele não teve outra. Isso eu posso garantir. Quem varre a casa grande é que sabe... – e continuou com suas gargalhadas, tentando quebrar o clima que havia no ar e arrancando um leve sorriso no rosto de Rosa.
Felipe entrou em casa à hora do almoço e procurou Rosa. Ela já estava preparando senhora Luzia para se dirigir à copa. Não esperou mais. Ouviu, inclusive cochichos dos escravos da lavoura próxima à fazenda, que diziam que o sinhozinho era frouxo demais, que se fosse eles já tinham pego essa mulher há muito tempo, e coisas do tipo. Felipe avaliou que era o senhor e que todos o deviam obedecer, inclusive Rosa. Estava já cego de paixão, e mandou chicotear um escravo que dizia que Manoel tentava voltar. O pobre, que talvez tivesse apenas falado demais, sem na verdade saber o que se passava, apanhou no tronco até que dissesse que tinha ouvido na cidade um boato que ele estava por invadir a fazenda. Mas, apesar de ser verdade, ele não sabia de nada mesmo.
Nessa fúria, ao ver o homem no tronco, os escravos horrorizados, subiu nele um calor, que se enfurecendo, pediu a Tina que levasse a mãe para almoçar e que iria sair, não estava com vontade. Gritou por Rosa, que assustada, foi obrigada a seguí-lo. Eles se dirigiram rumo à capela da fazenda, que era grande e possuía um adro e um salão para os dias de festa ao lado. Alguns outros balbuciaram resmungos e reclamações. Mas foi inútil. Ninguém ousaria desafiar o senhor, tão bom, agora encolerizado. Somente Tina gritou com ele:
― Ó sinhozinho, aonde vai meu filho, volta aqui, deixa a menina em paz.
Ele nem deu ouvidos. Apenas ordenou ao capitão do mato que mandasse todo mundo de volta ao trabalho, o que foi prontamente obedecido. E ainda disse que não faria nenhum mal para Rosa, que só queria conversar.
Entraram no salão, e tentando se acalmar, colocou a menina sentada, sentando-se também a seu lado.
― Rosa, não vou esperar mais. Você foge de mim, você desconversa. E quer saber, também não vou perguntar mais. Você vai se casar comigo, querendo ou não.
Rosa estava assustada, sem saber o que fazer ou dizer. Não esperava tal reação de Felipe, sempre cordial com ela.
― Hoje mesmo vou enviar os papéis para Padre Sérgio. Não tem erro.
Virando-se completou:
― Ouvi dizer que seu querido Manoel pretende invadir a fazenda. Olha, se ele fizer isso sairá morto daqui. Se souber de alguma coisa e se pode comunicar com ele, avise. Não terei piedade.
― Não sei disso não, senhor. Não sei disso não – repetia insistentemente.
E não sabia mesmo.
Felipe estava, mesmo tentando um controle, enfurecido com tudo o que ocorria. Aproximou seu rosto de Rosa e beijou-lhe a face. De ímpeto, mas com uma delicadeza de homem apaixonado, correu os dedos pela alça da blusa da menina que lhe estava à frente, desnudando o ombro esquerdo da pálida Rosa. Seu coração acelerava bruscamente, antevendo o que poderia ocorrer. Foi quando, tomado de profundo desejo, enlouquecido pelo corpo transpirando excitação, o jovem rasgou as vestes de Rosa e debruçou sobre seu corpo, explorando cada centímetro de prazer. O coração da moça parecia querer saltar do peito, quando respirou fundo, e para evitar o que parecia inevitável, segurou-o pelos cabelos, puxou o rosto para trás e gritou.
― Pare!
Manoel subiu em uma árvore, já bem próximo da fazenda e observava a calmaria de sempre. Escravos no trabalho, casa grande silenciosa, jardins verdes e o capitão do mato ausente, provavelmente que junto aos escravos das lavouras distantes. Calculou que poderia se aproximar, encontrar Tina pelos fundos, que chamaria Isabel e Rosa para atravessarem o riacho e fugirem ainda sob a luz do sol, sem levantar suspeitas de ninguém. Os companheiros ficaram de espreita, Manoel jogou uma pedrinha na janela da cozinha. Tina entendeu na hora e pôs o rosto pra fora, em pânico. Cochichando, falou:
― Homem de Deus, é Manoel? Saia daqui que a coisa tá feia! Esconda logo.
Manoel nunca foi de correr. Aproximou-se e perguntou o que se passava. Sem papas na língua, contou o que viu e ouviu. O rapaz ficou enfurecido. Um vulcão está prestes a explodir.
Felipe não entendeu, mas o grito de Rosa o fez paralisar. Balbuciou algo como... o quê... porquê ... Quando ela soltou de uma vez.
― Somos irmãos.
A frase paralisou Felipe. Não conseguia racionar e observava suas mãos que percorriam as belas curvas de Rosa. Foi tomado de um sentimento de remorso profundo.
― Quem disse isso? Minha mãe?
― Também ela. Por favor, não me toque, não quero cometer esse pecado...
Enquanto dizia isso:
― Agora tudo faz sentido. As palavras enigmáticas de minha mãe, sua recusa constante, meu pai que pedia que ficássemos longe um do outro. Meu Deus... que foi que eu fiz?
Ainda assim o corpo e o desejo ainda falava alto, quando olhava para a jovem quase sem roupa por cima da mesa que ficava num canto do salão. Gritou algum palavrão qualquer e continuou, cheio de fúria, sua ânsia de possuir a jovem. Rosa gritava por socorro, e essa mistura de proibido e assustado deixava ainda mais o rapaz alucinado. Foi quando a jovem conseguiu empurrar o jovem com os pés, que se foi um pouco para trás. Mas voltou imediatamente, antes que ela pudesse se levantar e fugir. Deitou-se sobre ela, quando, à porta:
― Felipe, seu desgraçado! Saia de cima de Rosa.
Manoel tinha os olhos vermelhos de ódio, por tudo e agora por ver que o senhor violava o amor de sua vida. Atracou-se com ele, pediu que Rosa fugisse imediatamente. A moça conseguiu correr pela porta dos fundos e gritava por ajuda. Isabel, ainda inocente do que se passava, viu a moça seminua correndo para a casa grande, enquanto Tina pedia que as duas atravessassem o riacho. Isabel correu para o salão na tentativa de impedir uma tragédia. Em vão. Encontrou os dois ao chão, numa intensa luta corporal. Viu sangue por todos os lados, fruto dos socos que ambos trocavam. Manoel era bem mais forte, jogou Felipe ao chão, chutou-lhe e dava por vencido. Virou-se para a mãe, e ao dizer que estava tudo arranjado para que fugissem imediatamente, Felipe, ainda ao chão, chamou-lhe pelo nome.
― Não gosto da ideia de matar um homem pelas costas.
Mal se virou para o rapaz, Felipe sacou sua arma e desferiu dois tiros certeiros, sendo um, fatalmente em sua cabeça. Isabel desferiu um grito terrível, de dor, enquanto segurava o já corpo inerte do filho. Rosa, ouvindo o grito, correu novamente para o salão. Tina, mais velha, veio logo atrás. A cena comovia a todos. Até mesmo Felipe pedia desculpas a Isabel, dizendo que não era o que ele pretendia.
Rosa tomou coragem, pegou a arma das mãos de Manoel, que, ferido, não conseguia se levantar. Apontou-lhe o revólver.
― Eu tentei Felipe. Eu não quis nunca. Eu sempre amei Manoel, mas sempre o respeitei como meu dono. Eu também não sabia que éramos irmãos até essa semana. Eu não queria porque não o amava. Você consumiu minha juventude nessa fazenda, e quer consumir minha vida a seu lado. Nunca! Nunca colocará a mão sobre mim novamente, nunca mais sentirá meu cheiro, nunca mais verá um sorriso meu...
Enquanto falava, Tina chegou e, mãos à cabeça...
― Rosa minha filha, abaixa essa arma, não faz besteira menina. Pensa na Isabel que já está sofrendo...
Luíza ouviu os disparos e perguntou o que havia acontecido. Contaram a ela. Ficou enlouquecida, tentou se levantar e foi amparada por uma escrava, que, a passos lentos se dirigia à cena do crime. Olhou ainda para a imagem de Santo Antônio que fica num nicho acima da porta da igreja e pediu misericórdia.
Rosa continuava com a arma apontada para Felipe, Isabel chorava sob o corpo e o jovem permanecia imóvel, olhos arregalados ante o transcorrer de tanto.
― Não, seu covarde. Eu não dormiria tranquila sabendo que matei meu irmão. Mesmo nunca termos vivido como tal. Sua vida não vale minha dor. Quero que saiba que vai viver com sua consciência em paz, com seu dever cumprido de bom cristão.
Manoel levantou as mãos, pedindo clemência, quando Rosa, engatilhou o revólver e completou:
― Fique em paz, meu irmão.
Virou o revólver e atirou em sua própria cabeça, caindo já desfalecida, tendo seu sangue misturado ao sangue de Manoel. Tina gritava e chorava pela moça que criou como mãe. Luzia chegava e via aquela cena horripilante, enquanto tentava consolar Felipe que apenas gritava:
― Não, não, não, não... pelo amor de Deus, não.
O barulho dos tiros chamou a atenção de todos. Em minutos dezenas de escravos se aglomeravam na porta da igreja e comentavam a cena. Nisso chegou os três amigos de Manoel. Compreenderam que a missão falhara. Chamaram Isabel, que se recusava a sair de perto do corpo do filho. Seria em vão a espera. Ela foi categórica que não iria sair dali. Eles se retiraram, disseram que quando precisasse bastava procurar por Ernesto. Foram embora.
Aos poucos foram se dispersando sob as ordens do capitão do mato. Albertina retirou Isabel da cena e o capitão carregou o senhor Felipe para a casa grande e mandou chamar o doutor e o padre. Ele estava bastante ferido, mas não era mortal. Bastariam alguns cuidados. Luíza também voltou para a casa e ficou ao lado do filho. Deram-lhe um chá para dormir. Enquanto a senzala velava os corpos em profunda comoção, o homem que estava no tronco foi retirado e cuidado por duas mulheres. Havia um clima de comoção no ar. Isabel não dizia uma palavra sequer.
― Mãe, o que você fez? – perguntou Felipe enquanto voltava do sono.
― Eu não disse nada meu filho. Ela sabia que vocês eram irmãos, eu nunca soube – mentia a mãe para evitar mal maior.
― Vou lá. Vou velar o corpo de Rosa.
A mãe tentou impedir. Cambaleando, sinhozinho atravessou o jardim e chegou na senzala, onde todos velavam os mortos. Debruçou-se sobre o corpo de Rosa, e chorava. Dizia não acreditar que eram irmãos, que o amor poderia superar tudo, que não precisava terminar assim. Luzia chegou em seguida, aos prantos pedia que o filho saísse dali. Ele virou-se para ela:
― A culpa sempre foi sua. Sempre foi. Devia ter me contado que nosso pai tinha um caso com a mãe de Rosa.
Todos se assustaram e começaram a entender muito do que se dizia nas rodas de conversa. A mãe pedia desculpas, dizia que não tinha certeza. Era uma cena comovente, naquela que até semana passada era uma fazenda tranquila, com um senhor calmo e generoso.
Felipe saiu, dirigiu-se à casa grande. Sua mãe o seguiu. O rapaz foi à cozinha e voltou para a varanda. Gritou pelos escravos, chamou a todos.
― Que minha dor seja maior que a da minha amada Rosa. Que Deus nos permita estar juntos.
E cravou uma peixeira bem no coração, caindo, ensanguentado enquanto sua mãe caía no jardim, gritando, em desespero. Nunca mais o ocaso foi alaranjado na fazenda Santo Antônio. Luzia recuperou-se e era agora a senhora de suas terras. Extensas. Lívia, irmã de Felipe agora vivia na fazenda. Seu marido era o encarregado do trabalho. A crueldade voltou naquele lugar, a partir do dia em que o netinho de Luzia, foi apanhando brincando com uma pequena escrava nos belos e verdes jardins da casa grande. Brincavam inocentemente.