A gente era obrigada a ser feliz
Anastácia tinha mais perna que gente da rua São Petersburgo, em Bangu. Mas suas cochas eram vestidas de uma pequena deselegância pelo calçadão da Paulista, como todas as pessoas em São Paulo, em suas habituais andanças de corre corre. De santo em santo, ninguém atravessa o mundo, nem pra baixo para ser ajudado. Mas o tormento que cobria seu rosto de aflição era um sorriso quase de plástico. Bom dia!
A mulher escolhe a bolsa vermelha, que combina com sua intimidade. Ali se escondem segredos que não são fáceis de desvendar em qualquer labirinto. Insere o cadastro da pessoa, a pessoa física, no sistema. Ninguém é de vento se possuir tal número. Até logo, volte sempre!
Nunca voltou, nunca volta. Anastácia era para conquistar novas clientes, com seu sorriso de marfim oriundo das savanas do velho mundo. E ali não havia mais elefantes, além dos instantes de espera.
Em casa havia mais endereço que todos os cartões postais do mundo. Janelas lado a lado, porta com porta, calçadões que elevavam a alma para além da atmosfera, no cume da cidade, telhado feito de amianto. Antes as fronteiras eram feitas de madeirite. Agora de alvenaria. E lá embaixo, depois da ladeira de porto geral, mas aqui mesmo no morro, ela compra o leite ensacado, tipo C. Bebe, menino!
Liga o rádio bem cedinho, porque é sábado. A cerveja gelando no freezer da geladeira. A linguiça para ser frita e degustada com farofa. O menino soltando pipa na laje e, acima da sua, é tríplex, como diz um garoto crioulo, do Grajaú.
O mini system tocando um pagode. A redenção do dia batendo no tamborim e as pernas sambando mais que a artimanha de se desviar de pessoas no centro da cidade. Amém!
Domingo vai lavar roupa suja. Dar um tapa na casa, arrumar. Faz a lição menino!
E segunda feira vai sorrir na loja mais que fez na vida toda. A gente era obrigada a ser feliz, dizia ela. Como criança que come doce para estancar o soluço. Uma bolsa vazia sai da prateleira. Tem arroz e feijão na panela. A comissão vale mais que o salário. Talvez um beijo na fim do expediente com o garçom da padaria. E nada mais que isso para não terminar em romance. Seu lábio mais delineado que a boca sensual de Angelina.
Na hora do almoço era ligar para suprir o chão com a realidade que dizia: também te amo, mamãe! Do outro lado da linha. E nessa hora chorava, chorava, chorava. Naquele instante, naquele instante era mesmo feliz.