992-MINHA HISTÓRIA VOU CONTAR- Memória
Toninho era um garoto tímido. Quando entrou para o grupo escolar teve de aguentar a gozação dos colegas maiores. Por ser o menor da classe recebeu apelidos à altura, como ser tratado de “mosquitinho” ou “formiguinha elétrica”. Ruivo e de pele clara, enrubescia por qual coisa, e aí era chamado de “camarão”. Sardento, alguns o chamavam de “ovinho de tico-tico”.
Possuía um dom inato, uma facilidade para decorar poesias e letras de música. E este foi o caminho para vencer (ainda que de maneira inconsciente) a timidez. Tão logo se ambientou com a escola e ficou sendo protegido da professora, que o defendia das brincadeiras de mau gosto dos outros meninos, tornou-se uma espécie de declamador oficial da classe.
Entrara semi-alfabetizado na escola, devido à própria curiosidade e ao incentivo dado pelo pai, seu Pedro, ex-seminarista. Aos cinco anos, já lia manchetes de jornais. O jornal diário chegava da capital com um dia de atraso. Todas as noites, o pai passava horas lendo as folhas do começo ao fim. Toninho ficava ao redor, pedindo explicações sobre os textos das fotos e dos anúncios. Entusiasmava-se com o que lia. As notícias da guerra eram suas preferidas, e no dia seguinte, na oficina do pai, perguntava sobre os detalhes.
— Pai, os aviões podem jogar bombas na nossa cidade?
— Não, filho, isto é só na Europa, onde estão guerreando.
— Por que estão brigando?
A conversa estendia-se. De vez em quando o pai perdia a paciência, e o mandava fazer alguma tarefa fora da oficina.
— Vai ajudar a sua mãe lá dentro de casa.
Na escola, foi, desde o começo, o melhor aluno. Se tinha dificuldade nas aulas de educação física. Era fraco, mirrado, e se cansava com facilidade. Gostava muito dos livros. E ajudado pela professora, Dona Mariana, aprendia depressa os textos difíceis e as poesias.
— Veja que bonito! Ele declama como um verdadeiro poetinha.
Vencida a timidez dos primeiros momentos, apresentava-se com desembaraço, agitava as mãos e os braços, virava os olhos nas passagens mais emocionantes, conforme a poesia ou o texto exigissem. Não ficava imóvel. Dava passinhos ou andava na direção dos assistentes, que, ao final das apresentações, não poupavam aplausos.
Em todas as comemorações e celebrações, lá estava Toninho com uma declamação, uma leitura de texto, uma apresentação, enfim. Os colegas às vezes debochavam dele.
— Hoje tem formiguinha? Tem sim senhor... — gritavam, imitando o chiste usado pelos palhaços dos circos.
No segundo ano, as apresentações foram ficando mais sofisticadas. A cada mês acontecia uma reunião festiva, chamada simplesmente de auditório. Todos os alunos do turno (da manhã ou da tarde) se reuniam no salão nobre, acompanhados de respectivas professoras, para assistirem apresentações especiais dos alunos, de declamação, pequenos diálogos teatrais, canções, danças e coisas assim. Participar deste espetáculo era um desejo de todo aluno do grupo escolar.
Toninho tinha, então, desenvoltura na declamação de poesias e leitura de textos. Agora, com as apresentações no auditório, o desafio era maior. Foi indicado para participar de um número musical com diversas meninas, entre elas Maria Cecília, a menina mais linda de todo o grupo escolar, em sua opinião.
Durante os ensaios, ficou combinado que cada um dos participantes — Toninho e as cinco meninas — se vestiriam a caráter. Ele, devendo se apresentar como marinheiro, e as meninas, como havaianas. As mães foram convidadas a assistir os ensaios, a fim de tomarem conhecimento das fantasias que os cantores-mirins deveriam usar.
Apesar das dificuldades pelas quais a família de Toninho passava, pois o pai pouco ganhava com seu trabalho, a mãe providenciou uma roupa de marinheiro, feita por ela mesma: camisa branca de golas enormes e com aplicações de fitas azuis e uma calça comprida, azul, de brim muito barato. Foi a primeira calça comprida usada por Toninho. Uma boina azul apareceu, emprestada por alguém.
As mães eram convidadas da diretora pra comparecerem ao espetáculo, e dentre as diversas que compareceram estava a mãe de Toninho. Presente estava também o inspetor de ensino, homem sisudo e de pouca conversa.
O nervosismo era geral. As meninas usavam blusas floridas e saiotes feitos de largas faixas de seda, em cores vistosas, como se fossem sarongs, a vestimenta típica das mulheres do Havaí. Elas entraram, iniciando o espetáculo, de braços dados, dançando um balé melodioso, e se postaram a um lado do palco. Toninho não tirava os olhos de Maria Cecília, e por pouco não perdeu a deixa para entrar.
Entrou num pulo e, aprumando-se, dirigindo-se para as dançarinas e ao mesmo tempo, para o palco, começou a cantar:
Minha história vou contar!
As meninas adiantaram-se, sempre de braços dados, dançando em passos miúdos, e cantaram em coro:
Se for de arrepiar
Nem é bom contar!
Toninho, entusiasmado, cantou mais alto, na seqüência:
Minha história é sobre o mar.
E as meninas, continuando o diálogo musical:
Então pode começar.
O pequeno marinheiro prosseguiu, entusiasmado, cantando suas aventuras e peripécias pelos mares. Cada estrofe cantada por ele era entremeada por frases cantadas pelas havaianas. E terminava mais ou menos assim:
Fui à China, vi Pequim
Minha história não tem fim...
Então, dando as mãos às meninas, repetiam juntos as duas últimas frases, elevando as vozes para terminar num gran finale.
As palmas foram demoradas. Dona Mariana puxava os aplausos. Bem treinados, Toninho e as meninas, de mãos dadas, agradeciam à platéia com inclinações do corpo.
O sucesso foi grande. As mães choravam de tanta alegria. Dona Mariana exibia com orgulho seus pupilos. E até o inspetor geral, saindo da sua seriedade, chegou-se para o grupo. Abraçando a professora e os alunos, dirigiu-se para Toninho:
— Vou pedir ao capitão do navio (e então, olhou para a diretora) a promoção deste pequeno marinheiro.
Devido ao tremendo sucesso, Toninho teve de suportar outro apelido.
— Hei, marinheiro, quando é que cê vai cantar de novo?
ANTÕNIO GOBBO
Belo Horizonte, 20 de outubro de 2006