985-COCHILO MITOLÓGICO - Mitologia Grega

As exemplares fábulas, narrativas mitológicas, histórias bíblicas e todos os relatos de conteúdo épico são, na verdade, registros em que deuses, heróis e animais assumem comportamento humano a fim de incutir algum ensinamento ou doutrina. Entretanto, podemos, com facilidade, verificar que a história seria outra, não fosse a preocupação da pregação ideológica.

Existe uma história que, por pouco divulgada, merece ser relida e recontada: é o mito de Argos, um ser mitológico transformado em pavão, em virtude de um ...cochilo mitológico.

Deste ser mitológico não se sabe qual o formato: seria homem, animal, ou amorfo? Sabe-se, com certeza (a mitologia helênica nos dá testemunho) que nunca dormia completamente, pois tinha cem olhos espalhados pelo corpo, cinqüenta dos quais permaneciam sempre abertos, mesmo quando o herói dormia. Que era um herói, também não existe dúvida. Dotado de força prodigiosa, não ficou famoso por suas proezas mitológicas, como o rival Hércules, mas por seus cem olhos.

Uma das primeiras façanhas foi livrar a Arcádia, famosa região do Peloponeso, de um touro inominado, que devastava as plantações, atacava as vilas e produzia uma mortandade entre os arcadianos. Aquela região era vítima de predadores, pois, em seguida apareceram alguns Sátiros, que causavam prejuízos aos habitantes, roubando-lhes os rebanhos. Pois novamente entrou em cena o gigante Argos, botando pra correr os tais ladrões de carneiros. Apareceu por lá, ainda, uma serpente fabulosa (ou mitológica?) conhecida por Equidna, de apetite insaciável, devoradora de bichos e homens. Pois foi Argos quem matou a temível cobra assassina.

Um herói assim tão trêfego foi escolhido para uma missão que foi a sua perdição. Apesar de sua força descomunal, era um servo fiel de Hera, irmã de Zeus, o todo-poderoso daquelas bandas e daqueles tempos. Hera, ciumenta por demais, havia transformado Io, uma rival, em uma novilha, e determinou a Argos que, cessando de fazer estripulias, fosse vigiar a novilha, que pastava livre. Argos amarrou o animal numa oliveira do bosque sagrado de Micenas. Como tinha cem olhos, e dormia com cinqüenta, era o vigilante ideal.

Zeus, contudo, ficou com pena de Io (por quem mantinha um certo chamego), chamou Hermes, o leva-e-traz de então:

— Quero que libere Io do feitiço de Hera. Sei que ela está transformada numa vaca. Me traga aqui a bichinha.

— Sim, Mestre, farei o vosso mandado.

Girando nos calcanhares alados, o Zaz-Trás mitológico chega ao bosque de oliveiras de Micenas. Ardilosamente, havia se apossado de uma das flautas de Pã. Atrás de uma pedra, começou a tocar uma série de berceuses. Argos, enfarado de tal incumbência, ao ouvir os maviosos acordes, foi fechando olho pro olho, entregando-se ao hipnótico langor da música da flauta mágica. Esqueceu-se até de manter a metade dos olhos aberta, e entrou num sono total.

Hermes não se atreveu a aproximar do gigante adormecido. Vai que um dos olhos esteja aberto e aí...— Assim pensando, atirou de longe uma pedra, com pontaria certeira. Argos jazeu morto de forma mais ignóbil, vítima do encanto musical e de uma pedrada fatal.

Hera, apesar de ciumenta, tinha outras qualidades. Uma delas foi a misericórdia com que tratou Argos, mesmo tendo fracassado na vigilância solicitada. Não tendo poderes para ressuscitá-lo, transformou-o num novo animal: um pavão, pequena ave de longa cauda, em cujas penas colocou os cem olhos do gigante.

Este é o fim da história, aqui recordada apenas para mostrar como e porquê um gigante mitológico foi transformado numa vistosa ave: tudo devido a um prosaico cochilo.

ANTONIO GOBBO – Belo Horizonte, 19 de setembro de 2006 –

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2017
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