984-ARGOS, O CÃO FIEL - Mitologia

O homem se aproxima furtivamente da cidade de Ítaca. Parece cansado sob os farrapos que escondem seu corpo atlético. Entretanto, caminha com o garbo de guerreiro e sua face morena, queimada pelo sol, indica estar afeito às intempéries de toda sorte. O rosto é magnífico: traços fortes realçados pelas rugas precoces indicam, com segurança, as feições de homem nobre.

Chega em passo célere, marcial, vindo da praia a leste da pequena cidade.. Antes de chegar às primeiras construções, toma a direção da esquerda, uma estrada pouco usada, que se dirige a uma grande propriedade, cercada por altos cinamomos, velhas oliveiras e imponentes ciprestes. É surpreendido (antes de chegar ao seu objetivo, que parece conhecer bem) por um enorme cão. Ao se aproximar, abana a cauda e dança ao redor do homem, que se ajoelha para afagar o animal.

— Argos! Que bom que você está ainda aqui! — Homem e animal se abraçam, ambos demonstrando imensa alegria pelo reencontro. — Mas...você está cego! — A triste constatação só é possível pelo exame detalhado, pois o cão caminha, pula e comporta-se como se portador da mais perfeita visão.

Levanta-se e se dispõe a retomar a caminhada, mas Argos se interpõe, querendo impedir a aproximação de seu amo da antiga moradia. A casa está a alguma distância, visível por entre as árvores que a cercam. O recém-chegado fica intrigado com o comportamento de seu fiel cão.

— Saia do caminho! Você está me impedindo de chegar à minha casa.

O cão, porém, insiste em obstar o amo, que, intrigado, percebe a intenção do animal. Senta-se à sombra de uma árvore e põe-se a afagar Argos. Lembra, com certa nostalgia, do seu embarque, muitos anos atrás, quando, como rei de Ítaca, partiu para combater os troianos ao lado de Agamenon. Seu cão Argos pulava pela praia, correndo de um lado para outro, até que, a um comando do amo, sossegou-se aos pés de Penélope, a quem competia vigilar contra todos os perigos, na sua ausência.

Entrementes, observa inusitado movimento ao redor da residência onde, ele tem certeza, Penélope, a fiel esposa, o aguarda.

Muitos homens estão pelo jardim, conversando em altas vozes, como se estivessem numa celebração. Apura a vista.

— São meus conhecidos. — Fala consigo. — E estão fazendo um... torneio. Sim, estão disputando alguma coisa, pois atiram com arco flechas em um alvo. Por certo, é uma disputa.

Sem saber, está assistindo a uma disputa pelo direito de possuir Penélope, a quem todos julgam viúva, pois seu marido desaparecera há mais de sete anos – período, segundo as leis locais, mais do que suficiente para considerar a esposa disponível para aceitar a mão dos muitos pretendentes. Durante anos, a bela mulher conseguira protelar esta decisão terrível, usando ardis inteligentes e desculpas irrefutáveis.

De repente, um vulto conhecido assoma ao balcão da imponente morada: é a própria Penélope, que, numa última tentativa de se manter fiel ao esposo ausente, propõe aos candidatos ao direito de possuí-la, um repto dificílimo.

— Proponho aos dignos pretendentes que, usando este arco, atirem uma seta através de uma série de anéis. Quem o conseguir será o vencedor do torneio.

Para espanto do observador oculto, trazem do interior da casa o seu próprio arco, feito por ele mesmo muito anos passados, de um madeiro especial, um fortíssimo galho de cedro, uma arma poderosíssima quando empunhada por braço vigoroso.

Um a um, os homens, conhecidos alguns, amigos outros e até estranhos, tentam usar o arco, sem resultado. Sequer conseguem retesá-lo. O falso indigente sorri ante a impotência dos contendores.

— Jamais o conseguirão! Sei bem o esforço necessário para o uso daquele arco. — Fala para si e para o cão, imóvel aos seus pés.

Levanta-se de repente. Argos permanece imóvel, deitado. Com um olhar experiente, o homem vê que o cão está morto. Abaixa-se e confirma.

— Pobre coitado. Talvez estivesse me esperando para me avisar de alguma coisa. Ou simplesmente morrer aos meus pés.

Decidido, caminha na direção da área onde o torneio ainda está em curso. Ao aparecer, na franja do terreno aberto, os disputantes e a própria Penélope estranham a chegada do indivíduo andrajoso. Ao lado da bela Penélope, um jovem alto e esbelto está postado, assistindo ao torneio. Ao ver o estranho, uma imagem atravessa-lhe o espírito.

É meu pai! — Pensa reconhecer no mendigo o rei de Ítaca. Mas se cala por prudência. Sem uma palavra, o estranho personagem toma o arco e dispara certeira seta, que atravessa todos os anéis dispostos em série e se perde, centenas de passos além, por entre as árvores.

Imediatamente, todos reconhecem no homem autor de portentosa proeza:o rei desaparecido. Penélope não consegue sufocar um grito emocionado:

—Ulisses!

Ao constatarem o perigo que significava a presença do recém-chegado, alguns puxaram de adagas e investiram contra ele. Telêmaco, entretanto, saltando por cima do balcão, corre na direção do pai, abatendo alguns homens pelo caminho. Os dois são cercados pela turba. Ulisses se apodera da adaga do mais próximo e, com Telêmaco, passa a desferir certeiros e mortais golpes nos seus adversários. Alguns fogem antes de serem atingidos. Em poucos minutos, pai e filho vencem a peleja. Diversos corpos inertes espalhados pelo terreno foi o que restou dos homens que, durante muitos anos, haviam assediado Penélope, a fiel esposa de Ulisses, rei de Ítaca.

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ANTONIO GOBBO – Belo Horizonte, 18 de setembro de 2006.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/03/2017
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