983-QUATRO HISTÓRIAS FUNEBRES -
1 – Na pequena cidade de Tabatoa, o doutor Armando Rocha, juiz de direito já meio gagá, gosta de funerais. Não tem velório, missa de sétimo dia ou enterro que ele não vá. E para cada circunstância, tem um discurso, um improviso que se repete infinitamente.
Uma tarde, soube de um velório lá pelas bandas do Escorregão. Dirige-se a pé, embora a distância seja de uns quatro quilômetros, pois o bairro já está fora da cidade. Trajando o uniforme que usa para tais eventos: terno preto, sapatos pretos, chapéu idem e guarda-chuva. Andando pela tarde enevoada de inverno, mais parece uma figura de histórias de terror.
O que ele não poderia sequer imaginar é que a viúva, ao ver, de longe, a lúgubre figura toda de negro, alarmada e com medo, disse ao filho:
— Zeca, fecha a casa. Tou vendo um vulto vindo das bandas da cidade. Mais parece o demo que vem para pegar a alma do finado.
Quando o juiz chega no local, a noite havia descido sua escuridão sobre o mundo. Encontra a casa completamente fechada.
Diacho — pensa — Ainda não são nem oito horas. O enterro de certo será amanhã...
A casa, isolada no meio de um pasto, deixa entrever, pelas frestas das portas e janelas, fracos raios de luz. Evidência de que tem gente lá dentro. O Doutor Armando dá diversas voltas ao redor da lúgubre morada e, finalmente, decide bater à porta de entrada. Bate diversas vezes, delicadamente, sem obter resposta. Intrigado, olha pelo buraco da fechadura e vê perfeitamente o caixão e uma mulher ao lado, rezando.
Esmurra a porta. Obstinado, não deseja perder o velório, de maneira nenhuma. Já havia rememorado as palavras do discurso e esperava saborear, como era de praxe, uns copinhos de cachaça com bolinhos e pães-de-queijo.
Um sinistro silêncio é a resposta aos seus murros. Sabendo que está excluído do velório, colocando as mãos em concha na boca, grita:
— Deixa estar! Hoje não posso entrar, mas amanhã, no cemitério, vocês não me escapam.
Lá dentro, assustados e trêmulos de medo, a viúva, Zeca e a meia dúzia de pessoas ouvem a ameaça. Alguém diz:
— Valha-me Nossa Senhora! É o próprio Belzebu! Além de vir buscar a alma do falecido, quer também levar as nossas.
2- Chico Cheira-Defunto é um cachaceiro especialista em velórios. No dia em que morreu Mané Bebum, seu melhor amigo de sortidas e carraspanas, faleceu também o Doutor Capistrano, uma das figuras mais importante de Tabatoa. Experiente na participação de velórios, não teve dúvida:
— Primeiro, vou no velório do Doutor. — pensou — Lá deve rolar muita quitanda gostosa, além de boa cachaça, porque o doutor também gostava da marvada.
Quando foi se aproximando da casa, ao subir os degraus da imponente entrada, notou que fecharam a porta principal. Era cachaceiro mas não era burro. Percebeu claramente que fora barrado. Chegando defronte a uma das janelas que se abriam para o alpendre, gritou para dentro da sala, apinhada de participantes do velório:
— Vocês e o doutor defunto, vão pros quinto dos infernos. Vou pro velório do Mané Cachaceiro. Lá sim, é que tem gente que presta. Além de cachaça de primeira.
3- De outra feita, Chico Cheira-Defunto conseguiu entrar no velório do Deputado Leôncio Viegas, homem do mais alto relacionamento na capital do estado e em Brasília. Importantes políticos e militares de altas patentes enchiam o salão mortuário, e as demais dependências da mansão, quando, por um descuido dos empregados, Chico Cheira Defunto adentrou-se. Foi empurrando uns e outros, no afã de chegar até à cozinha, de onde saiam os quitutes, xícaras de chá e copinhos de aguardente. Tudo dentro dos costumes daqueles bons tempos em que os velórios eram feitos na residência do falecido.
Não conseguindo passar pela porta que dava acesso à cozinha, Chico Cheira- Defunto viu um imponente homem fardado (que não era outro senão o Marechal Tobias de Azevedo Alencastro Costa Guimarães, íntimo do deputado), nas proximidades das bandejas cheias de quitandas e copos. Pelo peito do Marechal estavam dependuradas dezenas de comendas e condecorações, sinais da sua relevante importância. Chico, não sabendo decifrar o que diziam tantas insígnias, mas notando que era, sim, um homem do exército, gritou-lhe:
— Ô Sargento, me manda aí uma birita caprichada, um pão de queijo e um pedaço de lingüiça!.
4 – Janjão Santa-Maria era encarregado de preparar os defuntos no Hospital Divina Providência, antes da chegada do veículo da empresa funerária, que os levava para o velório no cemitério. Dava banho, trocava e acomodava o falecido no caixão. Era expedito e fazia questão de trabalhar sozinho, sem ajuda de ninguém.
Uma tarde, chegou um recém-falecido. Olhou para a etiqueta presa no dedão do pé esquerdo onde leu o nome do defunto: Manoel das Chagas. Pôs-se a trabalhar, e quando despiu o cadáver, ficou impressionado com o tamanho do pênis.
— Pombas! Que jumento! Isto é uma raridade. O pessoal da Faculdade de medicina vai gostar disto. — pensou.
Como já havia feito em outras ocasiões, cortou com destreza o enorme membro do defunto, colocando-o num vidro com formol. Sem seguida, preparou o defunto como de costume.
Ao sair do hospital, levava consigo, numa sacola de feira, o vidro com a preciosidade anatômica.
— Depois do jantar, levo pra faculdade. — pensou — Vou obter pelo menos uns 200 mangos por esta raridade.
Ao chegar em casa, a mulher perguntou-lhe o que trazia na sacola. Orgulhoso de seu feito, tirou o vidro e o exibiu à mulher.
— Veja, querida. É o maior pinto que já vi em toda minha vida.
A mulher, ao ver o conteúdo do vidro, assusta-se e emociona-se ao mesmo tempo. Custando a conter um soluço, exclama:
— O Chagas morreu!
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 2 de Setembro de 2006 –