VIDAS CRUZADAS - PARTE V
PARTE V
Ernesto saiu discretamente, tomou um copo de café à mão e foi ao fundo como quem buscaria algo e foi embora. Não queria estar ali pra acompanhar o desenrolar dos fatos. Rosa sentiu-se mal e precisou ser amparada, mas Felipe interveio gentilmente:
― Não fique assustada minha amada, não precisa dizer nada por ora. Aguardarei sua resposta amanhã ou depois. Fique tranquila.
Ela estava por demais emocionada, pois, casar-se com o senhor seria ganhar a liberdade completa e ainda poderia ajudar seus irmãos de senzala. Alguns escravos, inclusive, gostaram da ideia e torciam para que a menina aceitasse o pedido. Enquanto isso, terminava aquela comemoração da vida em tom fúnebre. Felipe sorria para os convidados, entretanto pareceu compreender o olhar assustado da menina que seguia para a senzala, com as chaves da casa grande em suas mãos. Não era fácil para nenhum deles.
Foi uma longa noite. Para muitos.
Rosa chorava e procurou a mãe de Manoel para conversar.
― Isabel, o que eu vou fazer? Como vou negar ao sinhô Felipe o casamento? Ele está enfrentando o mundo para ter meu amor. Mas não o amo, não o posso amar?
A velha escrava abraçava a menina, chorava com ela e dizia:
― Não sei, minha filha, não sei. Não sei como vamos fazer isso.
Rosa pensou em fugir. Mas nestes tempos os quilombos estavam longe e era ela agora muito conhecida. Não conseguiria sair da fazenda. Pensou em procurar Ernesto, sabido de todos de sua simpatia pela abolição, pedir pra apelar para as autoridades e conseguir sua liberdade. Mas isso era sonhar demais. Ainda mais que o comerciante olhou para ela, com piedoso olhar ao sair da fazenda discretamente, sabendo de sua dificuldade. Ele conhecia todas as histórias daquele lugar. Entendeu o imbróglio que estava por vir.
Na casa grande, Felipe agradecia a vida e contemplava o estrelado céu daquela noite sem lua. Uma escuridão sem fim mergulhava o quintal e a capela que se via logo acima de seu quarto. Apenas o barulho do riacho naquela noite quebrava o terrível silêncio que se fazia também dentro dele. No fundo, sabia que Rosa não queria se casar com ele. Se não o fosse teria aceitado de imediato.
Manoel continuava vagando. Teve ímpetos de continuar caminho. Sentado à velha estrada de terra batida, dos apressados passos dos bandeirantes e tropeiros do passado, queria fugir de tudo, principalmente de si mesmo. Escravo que era, chorou no colo do amigo que lhe fez silente companhia. Ao alvorecer, olhos ainda úmidos, rumaram caminho de volta e chegaram antes ainda do sol. Olhou para Rosa, sentada à beira do riacho. Correram um ao encontro do outro e se abraçaram longamente.
― Rosa! Eu a amo, sempre a amei, pelo amor de Deus não se case com ele.
― Não posso! – disse ela já em prantos – Não sei o que fazer!
E combinaram mais um encontro, à noite. Durante o dia pensavam em fugir, em enfrentar Manoel. Ele havia de entender.
E a fazenda viveu um dia de velório. As pessoas caladas, alguns cochichos que gostariam de ver Rosa com o senhor, para tentar melhorar a vida de todos.
***
― Onde está Rosa? Vá chamá-la a imediatamente.
― Sim senhora – respondeu cabisbaixa Isabel.
Era Luíza, que pelo tom de voz, iria fazer algo com a menina. Ela não iria nunca aceitar seu filho com uma escrava. Todos os que ouviram a mulher chegar aos gritos se assustaram. Embora Felipe não os castigasse, sua mãe era cruel e sádica. Só se limitava e se continha por causa do filho. Ah, mas se ela pudesse, o tronco não ficaria apodrecendo no quintal.
Rosa estava de pé e também ouviu que a chamavam. Manoel também se achegou. Tensão.
― Menina – disse a mulher aos gritos e dedo em riste, quase encostando no rosto dela –nem pense em aceitar se casar com meu filho. Você desaparecerá no mesmo dia. Já estou arrumando um lugar para expulsá-la daqui.
E virando para voltar, completou:
― E ai de quem abrir a boca e disser que eu estive aqui. O tronco voltará a ter utilidade. Nem brinquem.
E saiu rapidamente antes de chamar a atenção de alguém. Felipe havia saído bem cedo para ir à cidade. Provavelmente conversaria conversar com Ernesto. Manoel abraçou-a. Todas as pessoas olharam, comovidos, aquela cena. A partir daí, todos foram trabalhar. Dia que segue.
― Manoel, ô Manoel... – era Felipe que chegava e chamava pelo escravo – venha cá.
Entraram na varanda da casa grande. Felipe tinha um papel nas mãos. Ao longe, os que estavam por ali, ficaram preocupados com o que estaria por acontecer. Gentilmente, o senhor pôs as mãos no ombro do escravo e lhe convidou a entrar. Fecharam a porta.
― Isabel – disse Rosa em prantos – o que vai ser de Manoel? Que Felipe vai fazer?
― Não sei minha filha, boa coisa não é. Mas mal no corpo não há de ser. Ele não vai castigar meu filho. Tenho pra mim, já pensando nisso alguns dias, que ele vai vender meu filho.
― Combinamos de fugir, pensamos em sair e desaparecer no mundo. Hoje há muita gente que acolhe negro fugido. Mas eu temo pela fúria do sinhozinho. Ele há de me caçar até o fim. E mata Manoel.
A velha escrava olhou serenamente nos olhos da moça:
― Você sabe do segredo né minha filha. Você não pode se casar.
― É o seguinte, vou ser franco e direto, Manoel.
― Já imagino do que se trata. Eu também amo a Rosa e...
― Pode parar. Não quero ouvir nada – disse Felipe com tom de voz mais alterada – não me interrompa.
E virando-se para o moço, mostrou-lhe um papel que havia trazido da cidade.
― Não conheci o senhor seu pai, mas o respeito pelo que falam dele. Sua mãe sempre foi carinhosa comigo, e também não esqueço o que me fizeram quando estive à morte. Não sou homem cruel, como você mesmo sabe e tem visto. Nunca castigaria ninguém a não ser por uma atitude muito imprópria. Mas nesses casos de amor, não tem conversa. Sei do amor que você nutre por Rosa e ela parece gostar de você também. Mas é o seguinte: não vou dividir com ninguém. Toma, esse papel é sua alforria, está livre. Mas quero que deixe a fazenda imediatamente. Ela tem uma condição no registro: que você não more nas fazendas ou cidades por perto. Vá pra longe, bem longe, e nunca volte aqui. Sua liberdade está condicionada a essa situação. Se voltar, será vendido sem nenhuma piedade.
Batendo forte na mesa, Manoel, enfurecido, retrucou:
― Nunca! Não saio de perto de Rosa...
― Ora meu amigo, você não tem escolha. Ou vá por bem ou irá vendido. E pronto. Você tem uma hora pra sair daqui.
Virando-se para o capitão do mato:
― Mande trazer Rosa para a casa. Agora.
Manoel não teve tempo de conversar com a moça e explicar o que acontecia. Rosa foi levada à cozinha com o pretexto de ajudar a mucama a fazer um jantar especial. O capitão do mato esperou que o escravo pegasse seus poucos pertences e o acompanhou. Manoel apenas teve tempo de contar à mãe o que havia ocorrido e prometeu que voltaria. A mãe, claro, pediu que ele não fizesse isso e que ela iria dar um jeito de encontrá-lo, pedindo que deixasse uma pista com Ernesto. Um longo abraço carregado de lágrimas, de todos, marcou a partida do jovem. Somente Rosa não percebeu nenhuma movimentação.
Rosa ajudava na cozinha, sem ao menos saber o que se passava ao redor da casa. Enquanto a buscavam, Manoel ficou vigiado em uma sala, esperando que a moça já estivesse na casa. Tentou gritar, mas foi em vão. A casa grande, a voz sufocada, o barulho da cozinha... O rapaz foi empurrado para a senzala e o capitão o observava enquanto se despedia, para que pudesse acompanhá-lo até que se perdessem de vista os horizontes verdejantes, agora tão negros quanto a mais escura da noite que caía sobre aqueles montes. Foi quando, já a distância segura, o capitão do mato, com um mórbido sorriso, entre cínico e masoquista, disse ao empurrar o jovem apaixonado:
― Vai-te embora coisa ruim. E não ouse nunca mais pisar aqui. Some das minhas vistas.
Virou-se bruscamente, ouvindo um qualquer balbuciar de injúrias que Manoel lhe dizia.
Rosa chegou à senzala sorridente. Pretendia por em prática um plano de fuga, juntamente com Manoel. Ao ver o rosto triste dos irmãos cativos, deixou rolar uma lágrima desesperançosa, ainda sem entender o que havia ocorrido. Pensou que o amado estaria morto, caiu-se ao chão, sem as cores, até que alguns minutos se passaram e a velha escrava Isabel lhe dera ciência dos fatos. Inconsolada, ela relatava que havia combinado uma fuga para a semana que se iniciava. Nada mais poderia ser feito.
Uns poucos quilômetros, bem poucos mesmo, e Ernesto ouviu batidas em sua janela dos fundos. Abriu-a, um pouco assustado e acolheu o jovem escravo, que lhe deixou uma indicação de onde iria. O bom comerciante também indicou um lugar, um quilombo onde seria acolhido, como a outros que já estavam vivendo em paz no alto da serra que se desponta bem além do horizonte da pequena vila.
O sol apanhou de surpresa todos os escravos, que passaram a noite toda conversando sobre os últimos acontecimentos e sobre os desdobramentos que tais fatos acarretariam em todos. Foi quando ouviu o grito do capitão que marcava o início dos trabalhos. Nisso, com voz delicada, o que lhe é muito incomum, convidou Rosa para se dirigir à casa grande.
Isabel olhou com recriminação para a menina, que entendeu perfeitamente o recado. Estavam todos ansiosos.
¬― Então Rosa - disse em tom solene o senhor daquelas terras – Manoel não vive mais entre nós, partiu ontem a tarde. Penso que sua decisão a respeito do meu pedido está agora mais próxima. Já pensou?
― Então meu senhor, sou grata por todo o tratamento que nos tem dado, mas ainda não pude decidir. Gostaria antes de falar com a senhora sua mãe.
― Mas por quê? Não entendi... mas... tudo bem. Minha mãe, apesar de adoentada, certamente lhe fará ouvidos. Vou levar seu pedido a ela – e beijando-lhe a mão direita, completou – a partir de hoje vai morar aqui em nossa casa. Cuidará exclusivamente de minha mãe, que precisa de atenção especial.
Manoel caminhou e encontrou o quilombo. Com a carta de alforria não precisaria viver como negro fugido, mas preferiu assim, pois não gostava da convivência com os brancos. Além do mais, conheceu amigos e elaborou com eles um plano de rapto, para que fossem levados Rosa e Isabel para o quilombo. Deveria apressar, pois poderia ser marcado um casamento a qualquer momento naquela fazenda. Não seria algo muito complexo, pois os quilombolas já faziam incursões frequentes em diversos lugares com resgate de escravos. Ia ser algo relativamente fácil.
― Pois não – falou meio rispidamente – sabe que só estou me prestando ao trabalho de lhe ouvir porque meu filho fez questão de pedir. Diga logo sua negra insolente. O que quer de mim?
― Preciso que seja sincera comigo. Isabel, mãe de Manoel me confiou um segredo, mas ela não tem absoluta certeza, porque quem confiou a ela essa notícia, já não vive entre nós.
Um frio correu pelo corpo da senhora Luzia, que teve sua saúde agravada nos últimos dias. Ela sabia de tudo. Sempre soube.