977-O BAILE NO NAVIO

O BAILE NO NAVIO

Os oradores se revezavam no palanque. O comício realizava-se na larga avenida paralela à Praia dos Sete Coqueiros, bem defronte ao edifício de apartamentos onde estávamos alojados. Ao meu lado, Marise conversava com um rapaz bem apessoado. Eu tentava prestar atenção nas palavras do último orador da noite, Tancredo Neves, que expunha as idéias e os ideais que o levavam a participar do Movimento Diretas-Já.

Marise e o rapaz se afastaram, caminhando na direção da praia. Achando melhor a gente não se separar, fui atrás deles, guardando uma certa distância, pois alguma coisa estava rolando entre os dois e não desejava ser indiscreta. Mas foi ela mesma quem, me chamando para o banco onde estavam sentados, me apresentou ao rapaz.

— Isabel, este é o Durval. Esta é Isabel.

— Prazer.

Senti o aperto de mão do rapaz, firme e, ao mesmo tempo delicado. Aparentava uns vinte e cinco anos, moreno, cabelos pretos cortados rentes, à moda militar. Os olhos escuros, o rosto comprido, um bigode bem cuidado, fino, escondia os lábios. De estatura média, tinha porte atlético e movia-se com movimentos precisos. Parece professor de educação física, pensei.

— Isabel, o Durval é tenente....

— Ah! Então deve estar espionando o comício — Interrompi Marise.

— Não, não. Não sou de nenhum serviço secreto, dona Isabel. — Parecia brincar com a idéia. — Sou da Marinha e estou aqui porque meu navio está fundeado no porto. Estamos fazendo exercícios e manobras na costa do nordeste. .

— Então estacionaram em Maceió?

— Sim, os exercícios já acabaram, estamos com alguns dias de folga.

A conversa continuou assim, entre nós três. Marisa visivelmente enamorada do tenente e eu desconfiada, pois, apesar de estarmos vivendo uma época de “abertura política”, havia muito preconceito e até temor , relacionados com as Forças Armadas.

— Olha, vamos ter um baile no navio amanhã de noite. É a nossa festa de despedida. Vocês poderiam aparecer.

— Claro! — Marise não esperou nem o rapaz terminar o convite, para aceitá-lo.

Tentei objetar, em vão. Despedimo-nos do tenente com o combinado para a noite seguinte.

Marise tinha na ocasião dezesseis anos. e eu, sua prima, estava com vinte e três. Ela era muito avançada, namoradeira e gostava de enfrentar desafios,. Eu pretendia ser sua guia, preceptora, anjo da guarda ou o que quer que fosse mais apropriado para defendê-la dos perigos e ameaças nesta viagem pelo nordeste.

— Acho melhor a gente não ir nesse baile. — Aconselhei Marisa. — Não sei porque, tenho a intuição de que não é coisa de família.

O pai de Marisa não desgrudava os olhos da TV e a mãe não tinha opinião formada sobre o convite, a situação, essas coisas. Mas não proibiram a filha (e eu com ela) de ir ao baile no navio. Por isso, vestimos nossas roupas melhores (que nem eram tão chiques, pois as férias eram para curtir praia) e descemos para a portaria do edifício. O porteiro chamou um táxi, no qual embarcamos e demos a direção ao motorista.

— Cais do porto? A esta hora? — O homem estranhou nossa indicação.

— Sim, fomos convidadas para um baile no navio. — Marisa explicou.

O taxista não respondeu, mas deu de ombros, como se quisesse dizer “bem, não tenho nada com isso, é problema de vocês duas”

Parou o carro defronte a um grande portão.

— Só posso ir até aqui. Vocês têm de chegar a pé até o navio. Deve ser aquele encostado lá na ponta do cais. Está todo iluminado. — Olhando o taxímetro, disse: São dez pratas. Vocês têm certeza de que...?

Pagamos o motorista e descemos. À nossa frente estendia-se cais. Desolado e mal iluminado, molhado pelos borrifos das ondas, um cheiro forte de maresia. Trilhos se estendiam paralelos até o final do corredor estreito. Nenhuma pessoa à vista.

— Que lugar esquisito. — Comentei, mostrando meu desagrado. — O tenente bem que poderia ter vindo nos esperar.

— Vamos por entre os trilhos. — Marise se pôs a caminhar, decidida a chegar logo ao navio.

À medida que nos aproximávamos, o perfil do navio se assomava cada vez maior. Ouvimos os sons de música. Já bem perto, percebemos duas figuras, dois homens fardados, que se aproximaram. Marise foi falando, demonstrando um certo nervosismo.

— É neste navio que vai ser realizado o baile?

— Sim, é aqui mesmo. Vocês são...? — Perguntou o fuzileiro (pois só podia ser um deles).

— Convidadas do Tenente Durval;

— Ah! Venham por aqui.

Subimos uma escada e entramos no navio. Após o corredor estreito externo, fomos guiadas para o salão principal, local exato do baile.

Muitos homens fardados espalhados pelo salão, alguns sentados ao redor de mesinhas, conversando com moças e mulheres. Todos nos fixaram olhares curiosos (pude notar) e surpresos. Eu também fiquei surpresa, assustada, pois esperava... nem mesmo sei o que esperava.

A iluminação era feérica, mas toda em vermelho. A decoração, exclusivamente feita com balões infláveis, de festa de aniversário.

— Que lugar mais esquisito. — Falei para Marise.

— Calma, Isabel. Relaxe. — Ela me respondeu, sentando-se à mesa que um dos fardados indicou, puxando a cadeira.

— Vá chamar o tenente Durval. — Falou para o companheiro, que saiu em seguida.

Olhei para tudo e para todos. A luz mais parecia de cabaré, toda vermelha. As mulheres, idem. Comecei a ficar preocupada. Olhei para os balões. Amarrados em grupos de três, assemelhavam-se enormes genitais masculinos: duas bolas ladeando um balão de formato alongado.

— Marisa, estes balões parecem...— Tentei falar com Marise, mas fui interrompida pela chegada de um garçom que colocou sobre nossa mesinha (de metal, sem toalha) uma garrafinha de guaraná e dois copos tipo americano.

— Marisa, tou ficando com medo. Acho que estamos na festa errada.

Ela também já notara algo estranho.

— É mesmo. Veja só o jeito daqueles dois dançando...E que música baranga!

Mal havíamos bebericado o primeiro gole de guaraná. Quando chegou até nossa mesa um oficial de alta patente, pois nos ombros e nas mangas portava emblema de quatro fileiras, e condecorações no peito.

— Vocês são as convidadas do Tenente Durval? — perguntou-nos.

— Sim, somos sim. Eu sou Isabel e ela é Marise. — Adiantei-me na resposta. — Estou achando...

— Por favor, venham comigo. — O oficial cortou minha resposta.

Levantamo-nos e o seguimos, aliviadas por sair daquele ambiente “carregado” e suspeito. Entramos numa sala que mais parecia um escritório. O oficial nos indicou duas poltronas. Sentamo-nos e então ele assumiu seu lugar, sentando-se atrás da escrivaninha.

— Muito prazer em conhecê-las. — Forçou um sorriso que achei meio desajeitado. — Sou o Capitão Alencastro, e estou no comando desta nave.

O formalismo com que nos tratava destoava com o ambiente de festa que deveria reinar no navio.

— O Tenente Durval não está presente. — Prosseguiu o capital. — Saiu numa tarefa que o encarreguei. Certamente não irão encontrá-lo, pois só voltará ao amanhecer.

Sorrimos contrafeitas.

— Aliás, nem sei mesmo porque o tenente convidou as senhoritas para este baile.

— Nós nunca estivemos num baile em navio. — Marise explicou.

— Pode-se ver. Vejo também que estão aqui por equívoco.

— A gente já estava mesmo de saída. — Menti descaradamente, tentando prosseguir naquela conversa tão esquisita quanto o baile propriamente dito.

— Mando chamar um carro para vocês. Esperem aqui.

Saiu por alguns minutos. Eu e Marise trocamos olhares.

— Que ele quis dizer que “estamos aqui por equívoco?” — Marise falou em voz baixa, como que para si mesmo.

— Acho que este baile não é bem o que a gente pensava. — Respondi, tentando explicar.

O Capitão voltou.

O carro já está no portão do cais. Vocês serão acompanhadas por um fuzileiro. — Estendendo as mãos, apertou nossas mãos suadas.

— Desculpem o equívoco. — Terminou.

Saímos, caminhamos de volta pelo longo cais, ainda lúgubre e triste, mas seguras com a presença do fuzileiro ao nosso lado, que não dizia palavra. Fizemos o trajeto em silêncio. Um carro nos aguardava no mesmo local onde o outro havia nos deixado.

Marise não se intimida. Na efervescência da sua juventude, quer saber de tudo. Dirige-se ao fuzileiro:

— Desculpe-me, mas porque o capitão falou que a gente tava na festa errada?

O fuzileiro nos olha direto pela primeira vez. Surpreso pela interpelação da mocinha, não tem como esconder a informação:

— Sabe, senhorita...? Esta festa não é propriamente um baile. É nossa festa de despedida, e o capitão manda buscar aquelas mulheres pra ficar com a gente.

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ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 30 de julho de 2006

CONTO # 977 DA SERIE 1.OOO HISTÓRIS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/02/2017
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