976-QUANDO O OURO VIRA CINZA -

A mulher leu novamente a mensagem na tela do seu lap-top, tentando compreender o que estaria passando pela cabeça do ex-marido. Passava os olhos apressadamente, saltando tópicos e vendo apenas o que realmente interessava.

“Não vou deixar que me despejem de minha propriedade, como os comunistas fizeram em 1947, na Romênia...Os comunistas mataram meu irmão e agora o capitalismo vai acabar com minha vida... Quando você ler esta mensagem, minha vida estará terminada e a sua vida terá mudado para sempre... Onde você pensa que vai encontrar ouro, vai achar apenas cinzas.”

Ela percebeu claramente que se tratava de uma mensagem de suicida. Mas o que quereria seu ex-marido dizer com as últimas palavras? O patrimônio que ambos disputavam no tribunal de Nova York era constituído exclusivamente por um sólido edifício, localizado nas proximidades do Central Park, em um dos pontos mais valiosos da ilha de Manhattan. Estava avaliado em cinco milhões de dólares e, apesar de tombado pela prefeitura de Nova York, era muito bem construído e seria transformado em museu ou espaço cultural municipal, tão logo a questão do divórcio estivesse solucionada.

A alusão às dificuldades que ambos tinham tido na Europa, durante a guerra e depois, com o domínio soviético sobre a pequena Bulgária, era compreensível. O assassinato de Igor, irmão de Ivanos Clawizky, seu marido, pela polícia búlgara, e a fuga para a América haviam deixado marcas profundas e indeléveis em ambos.

Com suas jóias e os dólares que Ivanos mantinha escondidos, conseguiram adquirir alguns imóveis na grande cidade. Pouco a pouco, graças à habilidade de comerciar, Ivanos obteve a posse do edifício de quatro andares, na rua 62. Durante muitos anos, serviu de residência (um enorme apartamento de cobertura, ou penthouse, como diziam na cidade) e proporcionava boa renda, pois as salas eram alugadas para consultórios médicos. Dr. Ivanos Clawizky orgulhava-se da fachada do edifício, e principalmente de sua placa dourada, colocada sobre a porta à qual se chegava após galgar os degraus de mármore da escada. Era especialista em doenças do aparelho respiratório, mas deixara de clinicar há mais de dez anos.

Com o correr dos anos, a cidade cresceu e os imensos arranha-céus surgiram por toda parte. O edifício número 34 da Rua 64 ficou acanhado entre os demais. O comércio da vizinhança foi tomado por lojas de artigos de luxo e marcas famosas. Giorgio Armani, Chanel, Givenchi, Valentino mantinham nas proximidades suntuosas lojas e departamentos. Quando o prédio, agora espremido entre os gigantes, foi tombado pela prefeitura, constituindo-se em “monumento histórico” e não podendo ser demolido nem sofrer alterações que modificassem a fachada, Clawizky sofreu um abalo tão grande ou maior quanto o que tivera com a morte do irmão e a fuga do seu país. Transformou-se por completo. Ficou maníaco, com crises de depressão, e começou a maltratar Yvonice, a esposa. Não demorou muito, aconteceu a separação, pois a mulher não suportava não só os maus tratos como a maligna idiossincrasia do marido.

Foi uma noite insone para o doutor Clawizky. Após enviar o e-mail à ex-mulher, começou seu trabalho. Sabia que a mensagem iria encontrar a mulher em San Francisco e que ela nada poderia fazer para impedi-lo de realizar o que tinha em mente.

Usando ferramentas caseiras, fez a conexão entre os grandes tubos de gás colocados de pé, numa grade de metal, e algumas bananas de dinamite. O porão onde estava trabalhando era úmido e frio. O trabalho, delicadíssimo, foi feito com a perícia de quem, durante os anos de guerra, fora especialista em dinamitar pontes. Levou na tarefa o resto da madrugada. Amanhecia quando terminou tudo. Mesmo com o propósito de terminar sua vida com a do edifício, colocou-se entre duas vigas de ferro, onde se acomodou sobre velhas caixas de madeira e um colchão velhíssimo. Esperou o horário que havia determinado para a explosão: oito da manhã.

A manhã foi abalada por um barulho muito forte. A explosão e desabamento do edifício foi tão intenso que muitas pessoas pensaram tratar-se de um novo ataque terrorista em Nova York. Uma grossa coluna de fumaça se ergueu dos escombros.

— Nunca vi nada igual. — Disse um comerciante de Nevada, hospedado num hotel da vizinhança. — Pensei que a cidade estivesse sendo bombardeada.

Dois funcionários da Companhia de Gás de Nova York estavam nas proximidades, atendendo a um chamado que denunciava forte cheiro de gás nas imediações. Viram quando o clarão chegou até à rua, através das janelas rentes à calçada, e se abrigaram atrás de carros, assistindo ao edifício vir abaixo, em seguida.

Antes mesmo da chegada dos bombeiros ao local, o FBI emitiu uma mensagem oficial:

— Não se trata de ataque terrorista. Não foi atentado. Está tudo sob controle. – Afirmou o porta-voz da agência federal de investigação.

Mesmo assim, quase quarenta carros de bombeiros acorreram ao local, sobrevoado por meia dúzia de helicópteros. Ambulâncias desciam e subiam pelas ruas adjacentes. Os quarteirões foram isolados. A explosão ocorrera às oito horas da manhã, e, naquele momento, todo o edifício estava desocupado. Com uma única exceção.

Os bombeiros não sabiam se havia alguém no prédio.

— Pressupomos que o edifício estava vazio, pois é só de consultórios. — Disse o chefe dos bombeiros presentes no local. — Mas vamos procurar.

E, após duas horas de trabalhos, nos quais alguns bombeiros se feriram e outros ficaram intoxicados por gases, chegaram ao porão, local onde, presumia-se, ocorrera a explosão. As pilastras de metal retorcido foram fortes o suficiente para abrigar um corpo da destruição total.

— Ali, naquele canto! — Gritou um dos bombeiros ao ver o que parecia ser uma vítima.

E encontraram. Ainda vivo, não era propriamente uma vítima, mas o verdadeiro causador da tragédia. Levado para a ambulância em estado gravíssimo, pois as roupas estavam todas queimadas e revelando grande parte do corpo em carne viva, o socorrido morreu no percurso, não sem antes pronunciar algumas palavras ininteligíveis aos dois pára-médicos ao seu lado:

— O ouro... vai virar... cinza...

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ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 15 de julho de 2006

CONTO # 976 DA sÉRIE mILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/02/2017
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