974-A MORIBUNDA - Humor
Tarde de verão, o sol quente queimando as moleiras de quem se atrevesse andar fora das sombras dos telhados ou das árvores das praças da cidade. Pelas três horas, sem se importar com o calor, ouvia-se, infalivelmente, a voz de Zé Coquinho, ampliada pela corneta metálica, anunciando o filme que seria exibido no Cine Recreio.
— Não percão! Hoje às oito da noite no Cine Recreio, o filme “Poeira em Alto Mar” com
A figura de Zé Coquinho era a de um filme de terror de quinta categoria, isto é, daqueles que espanta, mas não mete medo em ninguém: baixo, muito magro, corcunda e mancando de uma perna. O rosto com uma barba sempre por fazer, era marcado por uma cicatriz. Usava roupas amarfanhadas e um chapéu preto de abas longas.
Na cidade dois cinemas disputavam o público amante de cinema: o Cine São Sebastião, situado na praça da matriz, era mais chique, exibindo filmes da Metro, Warner e Fox, com artistas famosos. Sua propaganda era feita através de boletins coloridos, distribuídos de casa em casa, também à tarde, com o nome do filme do dia e os dos próximos dias. Era ilustrado com pequenas fotos dos artistas e das marcas dos grandes estúdios americanos. Os garotos gostavam muito dos tais “programas” para cortar as figurinhas e jogar bafo.
O Cine Recreio era antigo, do tempo do cinema mudo. O edifício de dois pavimentos apresentava sinais da idade e exibia filmes brasileiros, mexicanos (muito sensuais para a época) e até americanos, de lutas marciais (kung-fu). A assistência era constituída na maioria por homens. Raramente exibia um filme de boa qualidade.
O Zé Coquinho era quem anunciava os filmes. Além da figura exótica, também era meio-analfabeto. Por isso o gerente do cine ensaiava com ele antes de liberá-lo para gritar nas ruas.
Uma tarde, o Zé saiu sem o devido “ensaio” e nas proximidades do cinema começou a gritar:
— Hoje no cine Recreio o grande drama de crime e amor: MADAMEX A RÉ MISTERIOSA!
Ao ouvir os gritos do seu anunciador, o gerente saiu correndo e alcançou o Zé antes que repetisse o erro:.
— Para, para Zé!
E ali mesmo fez o ensaio:
— É MA-DA-ME – CHIS – MADAME CHIS, ENTENDEU?
Sem se perturbar, mas tendo aprendido a lição, passou a gritar:
— MADAME X – A RÉ MISTERIOSA.
Doutra feita, ensaiou com o gerente o titulo que nem precisava ser ensaiado: “A Moribunda”.
Com a certeza de que estava falando corretamente, em cada esquina ele berrava a plenos pulmões, a voz ampliada pela corneta:
— HOJE! NÃO PERCÃO NO CINE RECREIO – A-MOR-I-BUNDA –
E repetia, quase que soletrando o nome do filme:
— Oito horas da noite. No Cine Recreio – A...MOR...I...BUNDAAA!!!
Naquela noite o Cine Recreio esgotou a lotação.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 23 DE DEZEMBR DE 2016
Conto # 974 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS