972-OS VIZINHOS- Memórias - 1a. parte

1ª. Parte - Francisco Curcio: Chico Cervejeiro ou Tio Gordo

Escrevo a respeito de um tempo em que os moradores de um mesmo quarteirão, os vizinhos, formavam verdadeiras comunidades, unidos pela amizade, que resultava não só o costume de visitas constantes, como pequenos favores entre si: o empréstimo de uma xícara de açúcar ou um livro de receita, ou, ainda, troca de notícias e fofocas inocentes.

O quarteirão da casa onde vivi minha infância, meninice e adolescência podia-se chamar “pequena Itália”. A década de 1940, a vizinhança do quarteirão onde estava a enorme casa de Tio Gordo (meu tio-avô), era formada por velhos imigrantes, com setenta, oitenta e até noventa anos, e seus filhos e filhas, como na nossa casa. Pessoas que tinham muita coisa em comum: os idosos italianos com suas lembranças da “dolce Italia”, e seus filhos e filhas, todos trabalhando com afinco para “fazer a América”, ou seja, vencer na vida.

Na casa de Tio Gordo moravam, além do próprio tio, meu pai (Pedro), mamãe (Maria), eu e Arhur, meu irmão mais novo; Madrinha Carolina e tio Armando, irmã e irmão de mamãe, solteiros,

Francisco Curcio era mais conhecido na cidade e na zona rural (onde moravam muitos fregueses de sua Loja por Chico Cervejeiro, devido a uma fábrica de cerveja (“Cerveja Bersagliere”) e de refrigerante (“Gasosa”), que manteve em funcionamento nas décadas de 1920 e 1930. E os sobrinhos-netos o tratavam de Tio Gordo, pela sua enorme barriga. Era alto, de forma que sua barriga era impressionante.

Cabeça grande, totalmente careca, com um “lobinho” – pequena formação semi-esférica pelo lado direito da

testa, olhos claros e rosto de feições enérgicas. Afável e sempre de bom humor, tratava a freguesia com educação e era muito querido. Para nós, sobrinhos-netos. Era a bondade em pessoa.

Não se casara. Dedicava-se totalmente à administração da sua loja de “secos e molhados”; não tinha empregados, era só ele a atender os fregueses. Ganhou muito dinheiro que usou para contemplar cada sobrinho (filhos e filhas de Beatriz, sua irmã) com uma casa residencial.

Reuniões na venda de Tio Gordo

Até o final da segunda guerra mundial, eram as notícias de guerra que mais interessava a todos. Tio Gordo assinava o Fanfula, jornal em italiano editado em São Paulo e os velhos italianos reuniam-se em sua loja, todas as manhãs, para saber das novidades e comentarem sobre os eventos. Scandeberg – italiano, apesar do sobrenome – lia as notícias e Tio Gordo, que havia estado na Itália antes da guerra, explicava o movimento das tropas na península.

Enquanto eles discutiam entre si e elogiavam Mussolini, o ditador da Itália, eu, Arthur e as outras crianças brincavam entres os muitos montes de areia e paralelepípedos, porque a rua estava sendo calçada. Ou jogavam bola na parte que ia recebendo o calçamento.

As mulheres passavam os dias dentro de casa, salvo, eventualmente, quando uma vizinha saia e batia ä porta da mais próxima.

— Dona Claudina, a senhora pode me emprestar uma caneca de farinha de trigo? Estava fazendo um bolo e...

Ou:

— Seu Antonio, me arranja um pedaço de osso para fazer o caldo da sopa.

O açougueiro cujas feições combinavam com seu trabalho, tinha a cara amarrada, usava um chapéu de couro que não tirava nunca, mas atendia de bom grado o pedido, serrando um bom pedaço de osso do lombo do boi, ainda com pedacinhos de carne, que, fervido em água com temperos do quintal, proporcionava um molho saboroso para a sopa da tarde.

As reuniões dos velhos imigrantes italianos duraram até o dia em que o Brasil entrou na guerra ao lado dos aliados. Então, a polícia política de Getúlio Vargas (DIP= Departamento de Imprensa e Propaganda) suspendeu o direito de reunião dos estrangeiros, pois seriam conspiratórias.

Contudo, os velhos não se deram por vencidos: nas manhãs ensolaradas e de ar fresco, os italianos sentavam-se ás portas de suas casas e conversavam quase que aos gritos, O que não durou muito, pois os filhos, vendo que a polícia podia aparecer e não gostar da artimanha, obrigaram seus obstinados pais a ficarem quietos dentro de casa.

Por volta de 1942, grandes transformações na vizinhança. Tio Gordo, não aguentando as exigências de horário para abrir e fechar a loja, e da fiscalização que considerava uma interferência, fechou o negócio.

Os velhos freqüentadores da loja, imigrantes italianos, ficaram sem um local de reunião, as quais, aliás, já estavam proibidas. Cada qual se recolheu em sua casa e a vizinhança ficou menos alegre.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 29 de novembro de 2016.

Conto # 972 da Série 1.OOO Histórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/02/2017
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