967-MEU TIO

MEU TIO

Inspirado em crônica de Iracema de Melo

a quem dedico este conto

Memórias são registros guardados com cuidado nas gavetinhas do nosso inconsciente que, quando abertas,nos trazem de volta um mundo de emoções, por vezes suavizadas, por vezes intensificadas, dependendo do que causou aquelas emoções, aqueles sentimentos.

Memórias e recordações são necessárias para a construção de nossa experiência de vida. Já a saudade é uma recordação impregnada da sensação da falta, da perda, que nos induz à melancolia.

Tenho lembranças de toda a minha a vida e gosto delas. Olhando através da janela do segundo andar do sobrado em que moro, no bairro de Santa Tereza, posso ver um lindo panorama, uma pequena parte da Cidade Maravilhosa, que gosto de contemplar desde menina: o morro de Santa Marta, o casario do bairro de Botafogo chegando à enseada com praia e marina, o Pão de Açúcar mais ao longe.

Do Morro de Santa Marta me lembro ainda verde, coberto de Mata Atlântica; transformado em uma grande favela ou, como se diz hoje, aglomerado (como se a mudança de nome melhorasse alguma coisa!); havia mais verde também no bairro; até o Largo do Machado era mais denso de árvores.

Dentro dessa atmosfera suave vivia nossa família, numerosa, de muitos tios e tias, primos e primas, que se reuniam para comemorar os aniversários, Natal, Páscoa, e em todas as datas em que combinavam se reunir em festivos encontros.

Ainda ouço a Polonaise de Chopin executada ao piano com paixão e energia por meio tio, na véspera de Natal. A casa estava cheia, pois os parentes de São Paulo haviam chegado. Todos nós ouvíamos em silêncio, até mesmo os meus primos de quatro ou cinco anos. Eu, meninota de onze anos, apaixonava-me pelo jovem tio, elegante, gentil e romântico.

Aguardávamos ansiosos o final da execução do piano para nos aproximarmos da longa mesa posta com iguarias natalinas. Depois da comilança, era hora da abertura dos presentes. Ouviam-se risadas e exclamações de surpresa perto da árvore de Natal enfeitada com primor e cuidado.

Ouvi um latido fraco: meu primo de três anos ganhou um filhote de cachorro policial. Uma delicadeza. Os adultos trocavam presentes: sabonetes, perfumes para as mulheres, estojos com sabão de barba, água para após a barba, desodorantes, que não eram muito comuns, então.

Naquele Natal ganhei móveis de plástico cor de rosa para bonecas pequenas. Minha irmã ganhou uma caixinha de música sobre a qual uma dançarina revoluteava.

Depois, havia musica na moderna eletrola, com discos long-plays. Meus tios e minhas tias dançavam e riam à vontade. Nós, as crianças, ficávamos acordadas até de madrugada, não havia hora para ir para cama. Uma festa inesquecível!

Naquele Natal, quando me deite, além da alegria incontida pelo presente recebido, persistia em minha cabeça a melodia da música tocada pelo meu tio ao piano. Que sonho!

Quanta memória linda, quanta sensação gostosa de ser recordada!

<><><>

Cresci, casei, tive filhos. Continuei morando em Santa Tereza, agora em outra rua, próximo a uma pequena praça onde crianças costumavam brincar.

Uma tarde subia a pé, sozinha, pela Rua Santa Cristina, íngreme como todas as ruas que dão acesso à Rua Almirante Alexandrino, e vi um homem caído de bruços na sarjeta. Aproximei-me. Magro, de cabelos escuros, bem vestido. Da cabeça, sobre a quina do passeio, escorria um filete de sangue.

Olhei para baixo e para cima. A rua estava deserta. Encontrava-me defronte a uma casa pintada de amarela, de dois andares. Um cartaz informava tratar-se de pensão com quartos alugados para homens. Uma só janela aberta, das diversas que davam para a rua.

Lembrei-me, num flash de memória: era ali que meu tio morava. Solteiro, sozinho.

Olhei mais atentamente para o corpo estendido aos meus pés.

Estarrecida, constatei: ali no chão... morto... era ele, meu tio pianista.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 24 de outubro de 2016.

Conto # 467 da Série 1.OOO Histórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/02/2017
Código do texto: T5914777
Classificação de conteúdo: seguro