966-MILAGRE EM TEMPOS DE GUERRA
Tempos de guerra: dias e noites de terror, de comida pouca, de sacrifícios de todos os tipos. E também de esperança (a última que morre) de que um dia a guerra teria fim, de coragem, de compaixão, de fé e de milagres!
Minha infância foi marcada por todas essas ações e emoções. Estava com sete anos quando chegou, pela boca de pessoas que fugiam da guerra, a notícia de que os soldados inimigos estavam próximos, todo mundo tinha de fugir ou se esconder.
Nossa família era assim: Pietro era meu pai, mamãe Maria; eu, Carlo, com sete anos; Giuseppe (dois anos) e Livia, bebê de apenas seis meses. A gente morava na vila, papai era sacristão da pequena igreja de São Francisco e sapateiro. Vida simples, de gente pobre mesmo, que sobrevivia mais pela esperança em dias melhores e pela grande fé de mamãe e papai em São Francisco.
A vila era pequena, talvez uma centena de casas, na região sul da Itália. Quando a notícia chegou, não tivemos escolha. Esconder? Onde? A casa era pequena e um pouco isolada, quase saindo da vila. Seria a primeira a ser vasculhada pelos soldados, famintos e sedentos.
— Vamos fugir. Maria, vamos preparar duas trouxas com nossas roupas e um pouco de comida. Eu levo uma e Carlo outra. Você cuida de Livia e Giuseppe vai comigo. Anda, vamos!
Em poucos minutos nossas poucas roupas e algumas peças de queijo, salames e outros embutidos, pão e broas e um cantil com água.
Quando saímos para a pequena rua, muitos vizinhos e amigos já estavam fugindo, em pequenos grupos.
Papai fez questão de trancar a casa e fechar a porta da entrada com uma enorme chave, que colocou sob um vaso de flores no meio do pequeno canteiro defronte à casa. Talvez nem tenha pensado que os soldados pouco se importariam com a chave da casa, entrariam de qualquer jeito, de preferência arrebentando portas e janelas.
Ajuntamos ao último grupo, com muitas pessoas, e fomos andando. Papai levava uma grande trouxa, um saco enorme que lhe pesava nas costas, ao mesmo tempo em que carregava Giuseppe no braço livre. Eu sentia o peso de meu amarrado, um grande lençol atulhado de roupas. Mamãe carregava Lívia no seu braço esquerdo, aconchegada ao peito e no ombro direito, uma sacola com seus objetos e coisas para alimentar o bebê.
Nós caminhávamos com dificuldade e aos poucos fomos ficando para trás. O grupo avançava bem depressa e a gente não conseguia acompanhar.
Estrada de terra, cheia de irregularidades. Eu tropeçava em pedras e buracos. Subidas íngremes e descidas reconfortantes. Terra nos sapatos, poeira por todos os lados.
Depois de alguns quilômetros de caminhada, perdemos de vista o nosso grupo de amigos e já vimos a poeira levantada pelos soldados invasores, que passaram pela vila sem se deter. Pensei que estariam com pressa de chegar a algum lugar.
Chegamos a um trecho em que a estrada descia por entre barrancos irregulares. Papai ofegava e mamãe andava com passos cansados.
— Ai, Pietro, tenho de descansar. Lívia precisa mamar.
O barranco que ladeava a estrada tinha uns dois metros de altura e cheio de sulcos ou socavões feitos pela enxurrada. Alguns rasos, outros mais profundos.
Paramos. Papai mandou a gente se esconder num socavão mais fundo, mas que, na realidade, pouco escondia. Os soldados iriam nos ver, com certeza, quando passassem pela estrada.
Mamãe e Livia, com Giuseppe, ficaram mais no fundo. Papai virou de costas para a estrada e estendeu seus braços em cruz, e ficou como uma grande ave de asas abertas protegendo sua ninhada. Eu fiquei sob um de seus braços, bem exposto à fúria e a sanha dos soldados que se aproximavam.
Mamãe, de pé, amamentava Livia. De seu pescoço pendia uma corrente de metal com um pendente: uma medalha com imagem de São Francisco de Assis, o santo dos pássaros e dos peixes, do qual mamãe era muito devota. Enquanto amamentava, rezava.
— San Francisco, nos proteja... meus filhos, meu marido, protegei-nos... a oração foi diminuindo de intensidade, pois os soldados poderiam ouvir.
Os lábios de mamãe se movimentavam silenciosamente. Notei, espantado, que um brilho dourado começava a aparecer ao redor da medalha no peito de mamãe, e que ia aumentando, aumentado. O fundo da fenda estava agora claro como se a medalha fosse uma lâmpada.
Os soldados se aproximavam. Ouvi o ruído cadenciado de seus passos e olhei para a estrada. Fiquei aterrorizado. Eles chegavam depressa. A estrada era estreita e na frente marchavam seis soldados, seguidos de seis filas. Iriam passar rente a nós e com certeza iriam nos matar para poderem passar.
Papai também ficou com medo, podia sentir seu corpo tremer.
— Encolhe, filho, encolhe. Eles vão passar em cima de nós!
Não consegui tirar os olhos dos soldados que caminhavam na filha que deveria esbarrar em mim e em papai. Mas — que coisa estranha! — os soldados passaram sem sequer encostar em nós. Era como se passassem POR DENTRO de mim e de papai. Procurei desviar de um fuzil que poderia me cortar as costas. Não consegui desviar nem o soldado se importou de passar por sobre mim, sem desviar e sem me tocar.
Lembrei-me de uma história contada por vovó, em que magos e fadas ficavam invisíveis, ninguém as via e assim se safavam de situações perigosas.
Virei o rosto, apavorado. Outros soldados viriam e por certo me cortariam ou bateriam em mim. Olhei para dentro, onde o brilho da medalha era intenso, quase difícil de ser olhado.
— Papai, que é isto?
— Reze, meu filho, reze. São Francisco há de nos ajudar.
A tropa passou. Muitos soldados passaram por mim e por papai. Nenhum deles sequer olhou para nosso lado.
Não sei quanto tempo depois ficamos ali, imóveis. Papai, a grande ave de braços abertos; eu, olhando ora para a estrada, sem mais soldados, ora para mamãe, cuja medalha de São Francisco ia pouco a pouco perdendo o brilho.
Só conseguimos sair daquela posição quando a medalha cessou totalmente de brilhar. Mamãe sorriu para nós. Livia dormia em seus braços. Papai também estava sorrindo. Nem parecia que havíamos vivido momentos cruciais, que poderíamos estar mortos ali naquela fenda. Papai recolheu os braços, deu um beijo na testa de mamãe, me puxou pela mão e começou a dançar e a cantar na estrada, nos passos animados de uma tarantela. Acabei por acompanhá-lo, pois o perigo já havia passado.
E ele entre rodopios, gritava:
— Foi um milagre! Milagre de São Francisco! Milagre! Graças a São Francisco!
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 11 de outubro de 2016.
Conto # 966 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS
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