A GAROTA DINAMARQUESA

Ninguém sabia as razões do que acontecera de maneira inesperada. A julgar pelo que foi dito, e ainda, acrescido de superlativos que ofenderiam até aos mais afoitos, o fato é que o rebuliço, e as consequências que viriam, não exigiria maior atenção se não denotasse temor ou mesmo, e ao menos, não deixasse um fio de receio para o que viria. A incógnita do que sucedera era a mais evidente mostra que o por vir era nada mais que uma vaga sensação de desconforto, de estupefação misturada com assombro.

Deu para ouvir tamanho gemido, porém, todos os ali presentes nada falavam; o silêncio seguido de certo suspense, fez com que se entreolhassem como se quisessem que alguém desse o veredito. Que alguém se levantasse e, agindo por todos, como um representante eleito, desse um basta ao que se procedia.

Assim aqueles minutos se passaram como se o tempo tivesse avançado por horas. Como se toda a história da humanidade, toda mesmo, se condensasse naquele micromundo onde apenas um gemido ressoou como o estrondo do primeiro grito do primeiro homem.

Tudo naquela triste casa lembrava a dor que todos sentiram quando a pequena donzela, ainda sem as mágoas e mesmo as maldades da vida adulta, por um disparate sem explicação, deu-se por vencida e fechou os lindos olhos cor de céu.

O que ocorrera antes, talvez por uma meia hora, não indicava nada do que acabaram de ouvir. Talvez, a mesma que agora silencia para a vida (pueril daquele salão), como se soubesse algo que a razão não explica, talvez, aquele frágil ser, sem entender as sutilezas da vida, sem que uma fada lhe visse dizer o que se passava, essa mesma que agora (só deseja embebedar-se de suas lágrimas) dorme o sono eterno, passou feito um furacão e avançou quarto adentro.

Bateu a porta com tanta força que o trinco, como se não existisse, estatelou no chão. O estrondo foi tão grande que a velha saltou da cadeira e também se estatelou no chão. Alguém dos presentes, por maldade ou tomado de um inesperado senso de humor inadequado para ocasião, deu sinais de esboçar sorriso. Não se ouviu riso algum, mas a sensação de que alguém assim procedesse, despertou ares de reprovação, em outros. De maneira que, segundo a etiqueta, o silêncio invadiu o recinto; e caras sérias, ou máscaras sérias, se comportaram segundo os padrões da dissimulação. Somente olhares se entrecruzavam como se deles saíssem palavras à respeito do ocorrido.

Já era madrugada quando um grito de socorro foi ouvido. Ninguém se atreveu por a cara na porta, primeiro, para evitar o frio que estalava ossos e pulmões, depois, o medo mesmo, porque, embora, não esboçassem nada nesse sentido, o fato é que circulava pelas redondezas histórias de seres que não pertenciam a esse mundo. Relatos que se espalhavam como faísca num paiol. Segundo as mais afiadas línguas, era sabido por todos que determinada noite fora vista, andando sem eira nem beira, uma mulher toda vestida de branco. Depois, que um homem, de estatura nem muito alta nem baixa, teria passado a galope, como um raio, sem que deixasse rastro. Apenas ficava, como indicativo de que ali estivera, o cheiro do cavalo e da roupa denotando anos sem lavagem. Havia, ainda, aqueles que diziam que em noite de lua-cheia, um ser, meio humano, meio cão, andava pelas ruelas a uivar como um lobo. Essas histórias, quando contada e recontada, sempre ganhavam algum acréscimo, a ponto até de afirmarem que a tal criatura que uivava fora vista nas cercanias da cidade. Sobre esse fato, por orientação do pároco, ninguém, principalmente as moçoilas, deviam sair à noite, posto que, segundo ele, a tal criatura, animalesca pelas suas características e seu estranho gosto em lamber os pés de suas vítimas antes de lhes sugar o brilho da vida.

A madrugada avançou; passos foram ouvidos. Mas, o que aconteceu naquele quarto de hora antes da meia noite, tocou de forma tão dura cada um dos presentes que mesmo o mais egoísta não poderia ignorar ajuda. Era evidente que algo ocorrera e que sem a ajuda de todos, o sucedido afetaria indubitavelmente, sem seleção e diagnósticos objetivos, todos os presentes.

O acontecido, depois se soube, instou a todos os presentes que deliberassem se o que acabara de ocorrer, seria um segredo de todos, ou se, a despeito do que alguns, devesse ser levado ao público. Que nada, absolutamente nada, do que ocorrera naquele quarto de hora, fosse guardado a sete chaves como um tesouro. Não houve discussões, nem discursos efusivos, mas, o que dali saiu, já no dia seguinte, estava estampado em todos os jornais.

Não é preciso dizer que com a notícia, ainda, sem os detalhes necessários, ou melhor, sem o recheio necessário, para que o povo pudesse entender o que ocorrera naquela pequena cidade, uma aldeia, a bem da verdade, o falatório tomou todas as rodas e reuniões. O noticioso, assim como, qualquer meio que não prima pela notícia, mas, sim pelo que dela pode tirar proveito, não tardou em recapitular fatos ocorridos décadas antes. Fatos que, segundo, o periódico, retornavam como se o que tinha ficado no passado quisesse, como que por uma força sobrenatural, voltar à tona para que ninguém esquecesse.

Por quinze dias, ao menos, não houve outro assunto. Por quinze dias o prefeito não despachou na sede do município, a câmara decretou recesso extraordinário, as escolas foram fechadas para remanejamento de turma porque o governador, assombrado com a descoberta de escândalos que envolviam seu nome, num arroubo de reizinho mimado, e não conseguindo controlar o jornal local, mandou fechar as escolas com essa “nova política educacional”. Porém, justiça seja feita, somente a garota estudantil, insatisfeita com os desmandos e com a pecha de que não queriam nada com a vida, num limiar de descobertas e novas possibilidades, se postaram frente aos desmandos que o dito queria implementar. Não é exagero dizer que para essa garota,-associada à tantas outras, e que depois contou com a presença de garotos-, as histórias sobre seres estranhos e uivos, não lhe impediu de se colocar numa espécie de vanguarda quando enfrentou, com posição e consciência política, o que iria implodir seus sonhos e dos que viriam.

Não fosse esse fato, ou seja, a posição dos estudantes, poder-se-ia dizer que a cidade, ela em si, já esquecida da sua existência e composta de uma população que não chegava a quarenta mil habitantes, era movida por crenças e costumes que se transmitiam de geração para geração. Casamentos eram celebrados entre os habitantes, de modo que, em certa medida, todos eram parentes de todos.

A divulgação do ocorrido em casa onde o inesperado se dera, colocou aquela família e a própria menina em situação tão midiática que não havia dia que não estivesse às suas portas repórteres dos mais variados meios. Não havia, para aquela família, um dia que fosse de sossego. Versões e mais versões do ocorrido apareciam em diferentes formatos. Especialistas, das mais díspares áreas, se perfilavam nos estúdios para darem seus pareceres sobre o que ocorrera. Teorias aos montes foram se juntando contribuindo para que a essência do ocorrido ficasse em segundo plano e, ao contrário, o acessório despontasse como o fato mais importante. Tanto se falou e se especulou que até nos mais simples bares, botecos mesmo, houve quem tivesse pareceres e fortes razões consolidadas a repeito do ocorrido.

Como se disse, por quinze dias, parecia que aquela cidade, outrora, esquecida em si mesma, havia se tornado o centro dos assuntos, parecia que o fato de a menina ter fechado seus lindos olhos azuis, ter-se deixado de viver uma vida que se reproduzia de geração para geração, esse fato se agravou quando se descobriu que a morte da menina afetava não apenas sua família, mas, toda história de sua classe social. Sua morte, prematura, indicava, para a classe a qual pertencia, o fim de séculos de privilégios e fortes indícios de que o que estava por vir - e era isso que lhes causava medo -, daquele dia em diante, representava o nascedouro de novos tempos. Significava, a despeito do que seus ancestrais ensinaram a seus avós e esses a seus pais, que novos tempos e novas formas de se relacionar com a sociedade, não deve se conduzir sob a tutela de muitos em privilégio de poucos.

Ao adentrarem no quarto, se depararam com a janela aberta e a menina não estava no recinto. Dias depois, ela fora vista liderando os estudantes contra a medida que o mimado reizinho quisera impor fechando as escolas. Cartazes foram espalhados com seu retrato, medidas de segurança foram reforçadas e, até, recompensa foi oferecida. Porém, a morte da menina, para uma vida pueril e reforçada com bailes e presentes, significou, mesmo para sua família e amigos, que quando se mexe com formiga, atiça o formigueiro. E para que o assunto não se transformasse em anedota pela vizinhança, de pronto sua família, que desde a mais remota ancestralidade nunca tinha passado por aquilo, procurou as autoridades para denunciar o desaparecimento. Todos os esforços foram empanhados: amigos influentes foram acionados, gente da imprensa foi contactada, todavia, de nada adiantou. Aquela altura a garota já era conhecida e reconhecida como uma perigosa e influente liderança no meio estudantil.

Os anos foram passando, membros da família morreram e a menina, que um dia, por forças desconhecidas, resolveu romper com um passado baseado em privilégios, transformou-se numa respeitada parlamentar dedicada às questões educacionais, muito embora, ela aprendeu com muita decepção, que mesmo no parlamento existem aqueles que, por conveniências e alianças questionáveis, fazem da tribuna apenas um palanque para que as coisas mudem para continuar do mesmo jeito.