A vida de Alice
Olhou pela janela, ainda atônita, sem saber quem eram eles. Ela não entendia. Não compreendeu o que pensavam.
Alice acorda às 6h. Às 07h15, já está no ônibus. Ela vende livros em um sebo no centro da cidade. Cidade fria de céu cinzento. Alice nasceu e cresceu ali, conhece cada canto. Ainda assim, ela nunca sabe onde está. Ela não entende muito bem onde realmente é o seu lugar. Alice trabalha lendo, ela vende livros, ela os lê.
Alice me disse que não vende livros. Disse que vende sonhos. “Pobre da Alice sonhadora”. Será que não percebe, Alice, que os sonhos não existem? É só a vida real. É só isso mesmo, Alice. Não há melhor para o final.
Ela não me convence. Ela não se convence. Alice sonha, lê e divaga. Acredita, mas aceita os problemas. Ela é estoica. E o olhar dela é magia. Onde tudo acontece. Em algum lugar fora daqui, fora dali, daquela cidade
fria de céu cinzento.
Alice usa os livros. Disse que usa os livros para fugir para outras vidas. Me disse que, às vezes, se cansa da própria personagem. Alice quer mais vidas. Quer ser gato. Ela quer ir e voltar. Voltar e ir. Alice não sabe muito bem o que quer. Nunca soube.
Às 18h30, fecha a porta da loja. Às 19h15, já está no ônibus. Às 20h13, abre a porta da casa. Em seguida, acaricia Charlotte, sua gata. Alice ama gatos — aliás, ama tudo. Por que Alice ama tudo? Se tanto não merece ser
amado... Alice disse: “É porque há amor de sobra em mim”. Em tempos de escassez, ela tem amor para esbanjar.
Alice está lendo um livro de cabeceira que eu não sei sobre o que é. Disse-me vagamente que é sobre a história de um homem que ainda acredita na bondade do mundo.
Eu não entendo esse homem. Eu não entendo Alice, que lê sobre esse homem. Ela adormece. Todos os seus dias são iguais. E ao mesmo tempo ela tem todos os dias diferentes, cercada de histórias. Diferentes histórias, nenhuma é a dela. Ela ainda não sabe qual é.
Quando acordou, fazia barulho do lado de fora. Eram eles. Olhou pela janela, ainda atônita, sem saber quem eram eles.
Eles, aos gritos, questionavam-na: “Alice, nos diga! Nos diga, por que ainda insiste em ser louca? Por que ainda sonha, Alice? Nesse mundo de horror... Você não enxerga, Alice? Você está vendada? Olhe à sua volta e perceba as expectativas frustradas!”.
Ela não entendia. Não compreendeu o que pensavam. Alice não tinha respostas, não entendia as perguntas. Ela não sabia como não sonhar.