O ÓRFÃO

Querer o mal de um filho é muito mais cruel e insidioso do que desejar o mesmo para um pai? E quando essas não são as intenções declaradas mas há a verificação desse prejuízo do mesmo jeito? Dolo ou culpa importa aqui? Não posso carregar o mundo nas costas!

Aquele que se volta contra aquele que o pôs no mundo, o lugar de onde afinal saiu, desencadeia um contra-senso fisiológico, mas se auto-golpear-se é possível e até mesmo bem razoável, essa cena trágica se mostra quase que uma regra, com regularidade na História. Há aí um despeito provocado por antecedentes, coisas que não dizem respeito ao ente desafiante. Assim parece ser com todos os homens desde Adão, a erguer a vista para os céus e indagar: “Por quê, Deus-Pai?”. Postura compreensível, se bem que o fim seja tristonho. A humanidade ainda não é forte e estabelecida o suficiente para sair do quintal de casa? Prefere ser tiranizada pelo dono do barro que a moldou? Fim da adolescência: momento de passos hesitantes, será que dá pra ir?, e se se quiser voltar? Insustentável... “É terrível Ele foi cortado em dois!” As histórias de rebeldia juvenil, escravização intra-genos/clã e tentativa de parricídio me atraem...

O sujeito que decide atacar, menospreza em demasia ou fere de fato a própria criatura que inseriu no mundo – essa é uma maldade genuinamente nascida ali, sem antecedentes, gerada numa realidade em corte, independente das situações antigas... porque aí recairíamos no problema do rabo da cobra! Que espécie de covardia louca é essa? Há mais tempo no mundo, muito mais chances de vencer! Provocar um inimigo que a gente sabe que vai derrubar. Existe algum mérito nisso? Em última instância, o filho está sempre num beco sem-saídas... a menos que haja um deus ex-machina – mas se Deus é o inimigo! O ódio do filho contra o pai é sempre mais inocente, porque foi estimulado pela faísca pervertida do mais poderoso! Em nenhuma época uma classe mais alta cedeu caminho voluntariamente à mais baixa. A passagem de cetro é traumática. E se cada família, ou determinado número de famílias, for essa história do universo em microcosmo? Mas o filho não mata o pai! Ele furta o lugar do pai: “a cabeceira da mesa é minha!”. O último filho... é um sortudo ou um azarado? Às vezes o ar rabugento e despretensioso do dia-a-dia acaba levando à esterilidade do próprio sistema reprodutor, da própria extensão do sistema reprodutor! O egoísmo e a cegueira que fatiam inclusive o derradeiro tablete de carne, fazem respingar o último filete de sangue! Uma raça que já sofreu deveras!

Fazer mal inconscientemente não é desculpa. Parece que esse sempre foi o problema: títulos e fachadas. O mundo seria menos bárbaro se houvesse menos santos. No momento em que vem à tona o que a divindade fez... ela tem que se emendar! Se Ele resolve dissimular a tranqüilidade de um dia após o outro rumo ao infinito e não presta contas dos próprios atos, não pode haver mais mundo, senhor de que inteligência? Tombo, amargura e leito de morte. Os dinossauros se extinguiram por ambíguas imprudência e frieza glacial.

Vou narrar a história de um filho adotivo e orgulhoso de sua origem supostamente real, em algum confim do universo... Seu pai – o único de que se recorda – era um homem muito rico que odiava compartilhar as suas posses. Seu filho foi educado para construir seu próprio império a sua maneira, única forma de demonstrar seu valor e pedigree. Mas ai! O mundo muda! Se torna mais duro e impressionante, sob o preço de enfraquecer seus habitantes! O que o mais antigo fez, o novo e ainda valente já não podia! Pois cortam suas asas... O príncipe era sistematicamente humilhado pelo Rei na frente de seus humildes servos e também diante de seus asseclas, os nobres da corte. E sob as vistas, outrossim, dos amigos daquele. E como tais rapazes eram em parte afetados pela depreciação e pelas grosserias perpetradas pelo todo-poderoso, se solidarizavam. Assim ocorre com os mais fracos – se juntam para sofrer em bando. Foram formuladas as promessas de um destino melhor: ter, conquistar o império. E não devia haver mais impérios, aquele era o único, já englobava tudo! Para isso, o eterno empecilho teria que ser afastado! Isso era uma labuta incalculável. A muito custo, só se podia amealhar parcas migalhas... ah, mas se se era tenaz, e sangue daquele sangue... O mais perigoso era, ainda antes da idade, crer que descobriu um atalho. Não há atalhos para o Grande Poder! E nem satisfaz ser o segundo em Roma. Foi aí que aconteceu de encontrar, em meio às peregrinações pelas províncias, um outro aventureiro-solo bastante combativo. Talvez fosse outro deserdado, a crescer longe dos auspícios do pai. Fato é que tinha muita sede de alguma coisa. O príncipe e seu bando viraram inimigos desse guerreiro e salteador anônimo. Pensando bem, tudo que esse tipo devia querer eram boas histórias para contar aos netos. E o bando principesco foi aniquilado por este inusitado personagem até o protagonista de nossa lenda se encontrar terrivelmente solitário. Sem poder vencer seu adversário, mas tendo, em contrapartida, eliminado muitas vidas e deixado o algoz alquebrado, partiu em debandada. Orgulho ferido e, ambivalentemente, ampliado – era só cicatrizar as feridas. Tinha rompido com o pai, não pretendia mais se sujeitar aos caprichos e despotismos do Rei, mas precisava de seus médicos. Felizmente, descobriu que ele estava em viagem ao chegar ao seu palácio e, como fosse muito querido ali, dele cuidaram em segredo. O que de sua cabeça tomava conta era um misto de sensações estranhas... Do cumprimento final de seus planos à simples realização da vingança contra o último verme que se lhe opôs e o deixou nesse estado. Até que desse choque de idéias brotou uma conveniência. Uma iluminação! Reordenar os peões, convocar os traidores, promover fissuras nas fileiras do exército paterno, torná-lo vulnerável a ameaças externas, ver o céu azul transmutar num verdadeiro caos de deposição de governo! Tudo isso graças ao forasteiro petulante! Iria pedir uma trégua. Seu sangue azul se enojava, mas era por nobre causa! Finalmente se aproximava, o dia com que tanto sonhara!

O príncipe e o forte guerreiro em farrapos e sem status, que só podia contar com a bravura, estabeleceram aliança. Um novo equilíbrio de forças era necessário para matar o Rei. Cheio de artimanhas e de astúcia, o príncipe agiu nos bastidores o quanto pôde e minou as forças da base de sustentação da Coroa de seu padrasto. O resto teria de ser em um duelo franco, mas se imaginava que um capitão resfriado já não podia com uma nau prestes a virar! Assim latejava o pulso do príncipe-escravo, à beira da planejada assinatura da alforria... Tantos anos pela frente para praticar o que quisesse, sem a “intervenção divina”!

O seu auxiliar, que com ele dividiria a vitória, não era problema para agora. Não havia espaço, em seu coração mutilado pelo fado do berço! Na batalha final, o cruzamento crepuscular entre as hostes insurgentes e a cavalaria oficial, a exibição cavalar e inesperada de um poder que se mantinha latente só para enganar os jovens e os de memória desafortunada. Era assombroso o que o Rei era capaz de fazer. Depois de tantos anos, esmagaria o ingrato do filho, junto com aquela raça de depravados e taberneiros que levava consigo. A abelhinha e o enxame. Mas não podiam fazer muito mal. Eram insetos contra o “homem mais rico” – e ganancioso. A crueldade monstruosa vem sempre do mesmo lado. Do lado que está ganhando. E a justiça é medida em atos: quem morre merece morrer.

Por isso, meus irmãos, é que eu disse que inexistem atalhos. E o penetra plebeu não é alvo de nosso conto nuclear e de intrigas entre gerações, por isso não nos importa o que lhe aconteceu. Resta que o espectador saiba: o filho fracassou por subestimar aquele ímpeto oculto de alguém que ainda se mantém de pernas fortes e que já foi filho um dia. Na decisão, a diferença de forças flagrante paralisou os músculos do príncipe. Um ex-herdeiro angustiado, em prantos, ou nem isso, pois perdeu a vontade de tudo. A marreta desce-lhe cachola abaixo. Estatelado, ainda grita encolerizado para o reino do nada o seu estribilho de oprimido. A última cólera. Que lhe estiola a alma, exaure o naco reserva de energia para soerguer-se e tentar lutar. Pouco importa. Nenhuma quantidade de esforço empregado surtiria efeito, o outro lado resistirá incólume. Esse é o superlativo da anemia e do fracasso, e da náusea, para quem lê. Uma vítima – desenhada desde os tempos antigos? A estrela não brilhou para este Édipo pela metade. Não era hora de arriscar.

Não agora, não ainda!

Porque montanhas levam milênios para se porem duras – e o caráter leva um pouco menos...

E a vida do Rei não perdeu o sentido, porque na posteridade haveria uma legião de descontentes de quem cuidar – talvez nos dois sentidos, bajular, absorver, converter, depois estar pronto para quando a cria resolver se desvencilhar, contra-atacar, arremessá-lo de encontro às pedras! –, muitos noviços e imprudentes, impacientes para tomar o lugar deste Júlio César de outras galáxias! E o hábito afia o tirano!

Consolo: no tempo apropriado, até o juízo de reis vacila, cambaleia, a justiça trai a pujança ancestral. A digestão do ódio não é imediata!